Por que transformar o bairro do Bom Retiro em Koreatown?

Raquel Rolnik apresenta algumas ressalvas em relação a essa proposta, que tem ganhado apoio nos órgãos de patrimônio da cidade, os quais parecem se esquecer do multiculturalismo característico do bairro

 02/11/2023 - Publicado há 6 meses     Atualizado: 06/11/2023 as 9:29
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Desde a gestão João Dória, há uma tentativa de transformar o Bom Retiro em Koreatown; essa tentativa ganhou um aliado importante, que é o Consulado da República da Coreia, que tem feito um trabalho incansável junto à Prefeitura, à Câmara Municipal, Assembleia Legislativa, os órgãos de patrimônio em todos os níveis para tentar constituir uma intervenção, transformando o Bom Retiro em Koreatown. E já conseguiu alterar o nome da Rua Prates para Coreia e o nome da Rua Três Rios para Seul, e agora tramita também que a Estação de Metrô Tiradentes possa se transformar em Tiradentes Coreia. Na verdade, essa ideia é uma ideia que encontra muitas resistências no próprio bairro.

Evidentemente, esse é um bairro que tem uma presença coreana e a presença coreana, hoje, é muito importante e merece ser celebrada, entretanto, a celebração da presença dos coreanos nesse bairro não pode jamais apagar um bairro que é absolutamente multicultural e que tem várias outras presenças também, e que talvez a característica mais importante desse bairro seja justamente a multiculturalidade e a não redução do bairro a uma só etnia, a uma só nacionalidade.

Existe uma  discussão importante para se pensar sobre o que está acontecendo com os órgãos de patrimônio dessa cidade. Em São Paulo, o órgão de Patrimônio Municipal teve um despacho do diretor, nem passou por uma discussão no conselho. No Conselho Estadual aconteceu uma coisa misteriosa, aliás, não é a primeira vez, o conselho, Condephaat, recusou a proposta, condenou, teve parecer absolutamente contrário à proposta e, misteriosamente, algumas semanas depois, reverteu essa posição e aprovou. Já o Iphan, o órgão de Patrimônio Histórico Nacional, também fez um parecer contrário com base em todo um inventário que havia sido feito de referências culturais do Bom Retiro e definindo esse inventário como multiculturalismo, esse inventário terminou em 2009, tem mais de 200 referências culturais de vários grupos sociais. E o Iphan fez um parecer contrário, mas lá vem também uma pressão política enorme sobre o Iphan para que ele mude esse parecer e permita a transformação e a captura dessa diversidade por uma só etnia.

Bem, já se conhece a história da Liberdade. Transformar a Liberdade em nipônica, em japonesa, significou apagar todo o passado “negro”  desse próprio bairro, uma questão que hoje tem voltado com muita força. Para que repetir os erros? Por que não é possível pensar numa intervenção de melhoria do bairro que consiga acolher essa diversidade?  E, sobretudo, consiga enfrentar as questões básicas do bairro de saneamento, iluminação pública, em vez de  pensar em grandes operações de marketing.


Cidade para Todos
A coluna Cidade para Todos, com a professora Raquel Rolnik, vai ao ar quinzenalmente quinta-feira às 8h30, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP,  Jornal da USP e TV USP.

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