“Um convite para refletir sobre as dinâmicas e o modo como nos relacionamos hoje em dia.” É assim que o diretor Luiz Fernando Marques Lubi define o seu mais recente trabalho Ainda Sobre a Cama, peça que fica em cartaz no Teatro da USP (Tusp) até 17 de dezembro.
A dramaturgia surgiu a partir da leitura da obra teatral de comédia e sátira Leonce e Lena, escrita em 1836 pelo escritor e dramaturgo alemão Georg Büchner (1813-1837). Na história original, Leonce e Lena pertencem a famílias da realeza e são prometidos em um casamento arranjado. Ambos não apoiam a decisão e fogem para a floresta. Sem se conhecer, os dois se encontram por acaso e se apaixonam, fazendo com que o casamento já marcado, agora, coincida com a vontade do casal. A primeira performance de Leonce e Lena ocorreu apenas em 1895, 59 anos após a criação da obra.
Apesar de inspirada na trama de relações afetivas de Büchner, Ainda Sobre a Cama estabelece narrativa e texto totalmente inéditos. “É um lugar meio cômico, porque tem o reconhecimento da plateia de rir em muitos momentos, mas ao mesmo tempo ela percebe o amargor, o patético ou mesmo o violento daquela situação”, descreve Lubi.
Com atuações de Duda Machado, Camila Cohen e Luiz Felipe Bianchini, a peça traz os dramas de uma série de personagens e casais, todos nomeados Leônceos e Lenas. Os nomes repetidos servem para abordar questões amorosas sob diversas perspectivas. “A peça tem essa estrutura de cenas isoladas, unidas por um fio narrativo. São várias Lenas e vários Leônceos em situações diferentes”, explica a atriz Duda Machado.
Apesar da distinção entre acontecimentos e personagens, a história sugere que há uma estrutura de relacionamento amoroso que se mantém. “É como se fossem vários espelhos de uma mesma coisa. Lembro de uma crítica da peça que disse que é ‘uma janela só para muitas vistas’”, conta Duda. A expressão dessa ideia, segundo ela, surge a partir do jogo cênico entre os atores. “Nós estamos sempre nos apoiando uns nos outros.”
A partir de um convite dos próprios atores, que haviam sido contemplados pelo Programa de Ação Cultural de São Paulo (Proac) para desenvolver uma peça que fosse inspirada na obra alemã, Lubi começou a trabalhar no projeto. Desde o início da produção, a equipe teve vontade de refletir sobre a imagem do casal heteronormativo que persiste na sociedade. “Nós estudamos a obra, entendemos o seu espírito e tentamos entender o que ela tem para nos dizer ainda hoje”, comenta o diretor. “Até brincamos na primeira cena, na qual há um narrador que questiona: ‘o que esse casal de séculos atrás tem para nos dizer?’.”
A peça abre uma discussão sobre a construção e repetição dos comportamentos de relacionamentos heteronormativos ao longo de séculos. “Esse casal do século 19 ainda fazer sentido para nós é porque a gente ainda carrega muita coisa daquela época, tanto da herança eurocentrada quanto da lógica normativa”, acrescenta Lubi. “Conforme avançamos na pesquisa, percebemos que, mesmo quando relacionamentos se comportam de outras maneiras – como é o caso da não monogamia e das relações homoafetivas –, esses paradigmas ainda nos assombram.”
Ainda que não seja uma mera adaptação da história original, Ainda Sobre a Cama estabelece um paralelo com a narrativa alemã ao apresentar um casal que tenta fugir do casamento e, no final, se vê preso nele. A fim de representar os diferentes marcos da trajetória de um relacionamento, como a primeira relação sexual, o casamento e os anos pós-matrimônio, a peça se passa “entre quatro paredes”: um quarto, em que há uma cama de casal e duas mesas de cabeceiras.
Para compor a peça, a equipe partiu de memórias pessoais relatadas em grupo. Ao ouvi-las, o grupo pôde analisar quais daquelas histórias expressavam não apenas experiências individuais, mas também traços sociais. “Esses relatos pessoais não precisavam ser totalmente verdadeiros, partindo do pressuposto de que estávamos construindo uma dramaturgia. Pensando nas fantasias das relações amorosas, no limite da violência, do tédio e do ócio, fizemos uma trama que misturava autobiografias e ficções”, comenta Duda Machado sobre o processo.
Para a atriz, Ainda Sobre a Cama reverte-se em “uma gama de relações amorosas que, no final das contas, sempre traz consigo um padrão social e estrutural que faz com que essas relações tenham um mesmo fundo falso”. “Nós queremos nos desvencilhar de determinados padrões sociais, mas estamos sempre presos a eles.”
A peça Ainda Sobre a Cama fica em cartaz até 17 de dezembro, às sextas-feiras e sábados, às 20 horas, e aos domingos, às 18 horas, no Teatro da USP (Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, em São Paulo, próximo às estações Santa Cecília e Higienópolis-Mackenzie do metrô). Os ingressos são vendidos a R$ 40,00 (inteira) e R$ 20,00 (meia entrada). Duração: 100 minutos. Classificação indicativa: 18 anos. Capacidade: 60 lugares. Os ingressos podem ser adquiridos virtualmente ou na bilheteria, uma hora antes dos espetáculos. Mais informações estão disponíveis no site do Teatro da USP e pelo telefone (11) 3123-5222.