Brasil inteligente se perde um pouco mais com a morte de José Arthur Giannotti 

O filósofo de 91 anos, um dos principais intelectuais brasileiros e especialista em Marx, não abria mão da análise rigorosa e crítica

 28/07/2021 - Publicado há 3 anos
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José Arthur Giannotti – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Nesses tempos estranhos, em que muitos rechaçam o óbvio e preferem ver a Terra como um disco flutuando no éter, em que o negacionismo quer o tempo todo colocar a Ciência nas cordas e um astrólogo ganha ares de filósofo, é muito doloroso saber da morte de pensadores de estirpe e cátedra, de filósofos reais que ajudaram a entender a enrascada que o mundo virou (e o Brasil mais ainda). No último dia 22, morreu Roberto Romano, ex-professor da Unicamp de Ética e Filosofia (esses artigos um tanto em falta atualmente), ceifado pela covid-19. Não deu uma semana, e o País ficou ainda menos inteligente. No dia 27, vítima de causa não revelada, morreu aos 91 anos José Arthur Giannotti, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, um dos maiores nomes da filosofia brasileira, autor de estudos seminais e rigorosos sobre Marx, Heidegger e Wittgenstein e pensador engajado. E, junto com ele, morreu também um pouco do Brasil culto, com olhar crítico e questionador, que precisa sobreviver às marés que, de vez em vez, teimam em jogar os barcos da inteligência contra os recifes da intransigência.

Porque Giannotti era desses faróis necessários com qualquer tempo – e principalmente quando as nuvens escurecem. Seu rigor e visão crítica – algumas vezes até ácida – estavam sempre presentes. Chamava, por exemplo, de “bordado” a filosofia que se limitava a comentar textos clássicos. O pensar filosófico de Giannotti ia muito além disso. “Giannotti era um caso estrondoso, porque era uma presença muito forte dentro da FFLCH e, principalmente, dentro do Departamento de Filosofia. Ouso dizer que Giannotti, assim como os professores Oswaldo Porchat e Bento Prado Junior, signifique aquilo que ouvi de um colega da Filosofia, muitos anos atrás: há dois tipos de professor na filosofia. O professor, apenas, de filosofia, e o professor que é filósofo. Parece-me que Giannotti é o último representante dessa categoria, que não é simplesmente professor de filosofia”, afirmou a Luiz Prado, do Jornal da USP, o professor Paulo Martins, diretor da FFLCH (leia mais depoimentos sobre José Arthur Giannotti no final deste texto).

Ele também criticou a opção pela política ou por cargos públicos que alguns de seus pares acadêmicos fizeram quando Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente em 1994 – “Nunca pensei que meus colegas detestassem tanto a profissão que escolheram” – e decretou o fim do PSDB em uma entrevista à Folha de S. Paulo em 2017: “Quer que eu fale de defuntos? O PSDB morreu”, decretou, vendo o caminho tortuoso que os tucanos estavam trilhando.

O filósofo Martin Heidegger – Foto: Reprodução

E ele podia falar de cadeira do partido: por todos os anos 1990 ele foi tido como um dos principais intelectuais do PSDB, apesar de nunca ter se filiado à sigla. Amigo de décadas de FHC – cuja casa visitava nos anos 1950 para discutir Marx e com quem fundou, já nos anos 1970, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) –, nunca quis trocar a filosofia e a academia pela política. Seu único momento no governo FHC – por assim dizer – foram alguns poucos meses, em 1996, no Conselho Federal de Educação. “Morreu hoje José Arthur Giannotti. Amigo há mais de 70 anos. Filósofo e grande leitor dos clássicos. Amigo como poucos, desses são raros. Deixa saudades e gratidão”, tuitou na quarta-feira, dia 28, Fernando Henrique.

O pensamento político e filosófico de José Arthur Giannotti operava pelas palavras. Muitas palavras, transformadas em livros que são sua grande herança para a cultura nacional. São obras como os hoje clássicos Origens da Dialética do Trabalho: Estudo sobre a Lógica do Jovem Marx – sua tese de livre-docência, defendida em 1966 e publicada em 1985 –, Trabalho e Reflexão: Ensaios para uma Dialética da Sociabilidade, de 1983, e Heidegger/Wittgenstein: Confrontos – este seu ultimo trabalho, um cartapácio de 500 páginas publicado ano passado e que ele considerava seu melhor livro. São obras fáceis, de leitura tranquila? Não necessariamente, já que críticos sempre apontaram seu estilo como denso e pouco acessível. Justamente por isso, trabalhos assim exigem olhar atento e postura, e não a meia-luz de um abajur enquanto o sono não chega. Daí a importância de Giannotti e sua visão filosófica: o mesmo rigor já mencionado ele transpunha para seus livros e exigia de seus leitores. Alguns amigos, em tom de brincadeira, diziam que o seu livro mais palatável era Notícias no Espelho, uma coletânea de artigos publicados na Folha e lançado em 2011. Palatável, sim, mas com as exigências de sempre de seu autor.

“Giannotti foi uma das figuras mais importantes e fundamentais em todas as dimensões do que eu considero ser o trabalho intelectual. O pensamento filosófico de Giannotti é um dos mais consistentes e originais da segunda metade do século 20 e entrando pelos primeiros 20 anos do século 21 – porque, aos 90 anos, no ano passado, ele publicou o que considero um dos livros mais importantes nas últimas décadas na filosofia brasileira”, declarou ao Jornal da USP o professor Luiz Henrique Lopes dos Santos, do Departamento de Filosofia da FFLCH.

O filósofo Ludwig Wittgenstein

São Carlos, França, São Paulo

José Arthur Giannotti nasceu em 1930 em São Carlos, no interior paulista, mas se mudou para São Paulo ainda muito novo, já que seu pai – que havia conseguido um emprego na capital – desejava dar uma formação universitária aos filhos. Conseguiu. E aquela Pauliceia já nem tanto desvairada chamou a atenção do rapaz – principalmente sua biblioteca pública, que anos mais tarde ganharia o nome de “Mário de Andrade”. Lá, entre livros e mais livros – muitos já de filosofia – ele conheceu outros jovens curiosos. Um deles era Rudá de Andrade, filho do antropofágico Oswald. Foi na casa do modernista que Giannotti conheceu intelectuais como o crítico literário e professor Antonio Candido, que o definiu como “um mocinho inteligente”. Por sugestão de Oswald de Andrade, Giannotti foi fazer um curso sobre Platão ministrado por um amigo do escritor, o pensador conservador Vicente Ferreira da Silva. “O professor de filosofia, que também participava de discussões na casa de Oswald e em sua residência, orientou Giannotti a ler Paideia: A Formação do Homem Grego, do alemão Werner Jaeger (1888-1961), uma obra de mais de mil páginas que o jovem estudou com afinco durante seis meses”, relembrou em um artigo na Folha de S. Paulo o jornalista Maurício Tuffani, morto recentemente. E, a partir daí, seu caminho em direção à Universidade de São Paulo e à filosofia já estava traçado. Um caminho do qual ele jamais desviou.

Giannotti se formou na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP – antecessora da atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – e teve grande influência de dois professores franceses: Gilles-Gaston Granger e Claude Lefort, o primeiro nos estudos de lógica e o segundo, na filosofia política. E foram exatamente eles os responsáveis pelo período francês do filósofo, entre os anos 1950 e 1960. Primeiro, quando Giannotti – então professor de Filosofia em escolas estaduais (em Ibitinga e São Paulo) – recebeu uma bolsa do governo gaulês para fazer seu doutorado na Universidade de Rennes, sob orientação de Granger. Ficou lá de 1956 a 1958, e aproveitava os espaços das aulas para ir até Paris e se encontrar com Lefort, já de volta ao país. Foi a convite do francês que passou a participar do grupo de estudos e debates Socialismo ou Barbárie, de orientação marxista, mas contrária ao regime da União Soviética e à sua influência sobre o PCF (Partido Comunista Francês), como apontou Tuffani em seu artigo. A tese de Giannotti, sobre o filósofo e economista britânico John Stuart Mill, foi defendida em Rennes em 1960, quando ele já estava de volta ao Brasil e à USP, onde começara a lecionar Lógica da Filosofia.

Os anos 1960 para Giannotti foram intensos e tensos. Com o Golpe de 1964 ele e seus companheiros de leituras marxistas passaram a ser vigiados mais de perto pelo regime dos generais-presidentes – culminando com a sua cassação e a de Fernando Henrique, entre outros, pelo AI-5, em 1969 –, viu o nascimento de Marco, em 1966, seu filho com a poeta e professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Lupe Cotrim (morta em 1970) e começou a enfileirar publicações de livros. Ao todo, foram 15 obras próprias publicadas, fora traduções como a do para lá de desafiador Tratactus Lógico-Philosoficus, do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, em 1968.

Karl Marx – Foto: via wikimedia Commons / Domínio público

Após a cassação (ele só voltaria à USP em 1979, com a Anistia), Giannotti teve mais uma oportunidade de arrumar as malas em direção à Europa: Granger, sabendo do que havia acontecido e lecionando na Universidade de Aix-en-Provence, no sul da França, convidou-o para dar aulas na instituição. Giannotti agradeceu mas preferiu ficar. E no começo dos anos 1970 ele, Fernando Henrique, o economista Paul Singer e o sociólogo Octavio Ianni criam o Cebrap. É também nos anos 1970 que Giannotti se dedica intensamente à obra de Karl Marx, se tornando um nome de referência internacional quando o assunto era o criador de O Capital.

Para alguns analistas, a lógica, que havia sido sua área inicial de atuação, passou a ser importante para seu estudo e percepção do pensamento marxista. Seu pensamento independente e fora das correntes contrárias ao socialismo, sua análise crítica do marxismo foi continuada em obras como Exercícios de Filosofia (1977), Trabalho e Reflexão (1983), Marx, Vida e Obra e, principalmente, Certa Herança Marxista (2000). Foi nessa obra que Giannotti estabeleceu o ponto crucial de sua crítica ao pensador alemão, mostrando que a vulnerabilidade do marxismo não estava no fracasso do regime soviético, mas na aceitação acrítica da inevitabilidade dos processos históricos que levariam à revolução.

Provocador e irônico

Afora ter sido um dos principais intelectuais brasileiros da segunda metade do século 20 até o último dia 27, José Arthur Giannotti também tinha uma outra característica, que de várias maneiras conjuminava com a primeira: a de ter sido um grande provocador. Não tinha receio em colocar o dedo em determinadas feridas sociais e políticas (a decretação da morte do PSDB, citada há pouco, é um exemplo), de polemizar – a aqueles que o consideravam um traidor do pensamento marxista, pelo menos de sua versão nacional, ele respondia, com uma certa dose de ironia, que era o “último dos marxistas” – ou de criticar o avanço tecnológico, também com um olhar irônico.

“Eu não sou um sujeito que fala sério, nunca digo as coisas sem uma outra coisa por trás”, afirmou ele, dando a pista, à Revista Pesquisa Fapesp em 2003. Nessa entrevista, ele também faz uma análise sobre a sociedade contemporânea, o que colaborou com sua aura de provocador ou polemista. Mas sempre com um olhar arguto. “Penso que a sociedade de massas tem defeitos, alienações absolutamente terríveis, mas tem virtudes inauditas. Tanto no campo da cultura como, por exemplo, no campo da saúde. Não sou entusiasta do capitalismo, gostaria que ele fosse diferente, mas prefiro o capitalismo à brutalidade das sociedades agrárias.”

José Arthur Giannotti era dessas figuras singulares que não abria mão de uma sinceridade pessoal e intelectual que alguns até definiam  como um certo mau humor, angariando desafetos ao longo da vida, mas também muitos seguidores e amigos fieis. Concordar ou discordar dele fazia parte do jogo. Porque Giannotti não cansava de fustigar, comentar, refletir sobre tudo e apontar o dedo para aquilo que ele achava inadequado – desde o cheiro de provolone da pipoqueira da FFLCH que invadia sua sala de aula, como lembrou seu ex-aluno Hélio Schwartsman em artigo na Folha de S, Paulo, até questões que envolviam o público, a realidade brasileira e a postura do Brasil como nação.

E em todas essas questões, ele não fazia nenhum esforço para facilitar a vida de seus interlocutores – fossem alunos, colegas acadêmicos ou figurões da política. “Um dia, um colega disse que as discussões estavam muito abstratas. Giannotti pegou um daqueles copinhos de plástico de café e perguntou: ‘O que é mais concreto, esse copo ou o Estado?’. ‘O copo’, respondeu o coitado. Giannotti esmagou o copo e disse: ‘Agora, faz isso com o Estado’”, contou o sociólogo e também ex-aluno Celso Rocha de Barros em um tuíte.

“Ele não estava lá para facilitar as coisas. Giannotti abordou problemas filosóficos difíceis, usando termos particularmente complicados. Para piorar, disparava perguntas aos alunos, que, obviamente, não sabiam responder”, contou Schwartsman em seu artigo, relembrando de suas primeiras aulas com o mestre e sua proverbial “falta de papas na língua” e seu temperamento esquentado. Mas o articulista faz uma revelação em seu texto, colocando em perspectiva uma vida tão complexa e rigorosa quanto seus escritos. “Não tudo, mas muito da rudeza de Giannotti era fachada e se dissolvia nos deliciosos almoços e jantares que ele promovia em sua casa no Morumbi”, revelou.

Porque, mais do que em seus livros, o legado que José Arthur Giannotti deixa é o de uma vida sem meias-palavras, sem subterfúgios intelectuais ou sociais. Uma vida pautada na integridade plena. Como afirmou o professor Marco Zingano, em um texto que a FFLCH utilizou como nota oficial lamentando a morte do filósofo: “Tudo nele era íntegro, verdadeiramente íntegro, profundamente íntegro. É esta a imagem que guardo dele, quando saí por última vez de um jantar e o vi, do alto da escada que levava ao seu gabinete de trabalho, acenar o adeus: um gigante homérico, um intelectual insubstituível, um homem que fez da vida a mais bela expressão da potência humana”.

Humana, demasiadamente humana.

“Giannotti exercia diariamente, na sua vida, a filosofia”

Leia abaixo depoimentos sobre o professor José Arthur Giannotti dados a Luiz Prado, do Jornal da USP

Paulo Martins, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP:

A perda de Giannotti, assim como foi a perda do professor Alfredo Bosi, alguns meses atrás, e, recentemente, da professora Anita Novinsky, nos deixa absolutamente consternados. A FFLCH está passando por momentos difíceis, porque nossos grandes professores estão partindo.

Giannotti era um caso estrondoso, porque era uma presença muito forte dentro da FFLCH e, principalmente, dentro do Departamento de Filosofia. Ouso dizer que Giannotti, assim como os professores Oswaldo Porchat e Bento Prado Junior, signifique aquilo que ouvi de um colega da filosofia, muitos anos atrás: há dois tipos de professor na filosofia. O professor, apenas, de filosofia, e o professor que é filósofo.

Parece-me que Giannotti é o último representante dessa categoria, que não é simplesmente professor de filosofia – não que isso seja pouco, já é muito –, mas professor-filósofo, aquele que exercia diariamente, na sua vida, nas suas relações, o exercício da filosofia. Não era só uma profissão, era um estado. Nesse sentido, creio que a perda do professor Giannotti seja algo irreparável. E não sei quando teremos a oportunidade de conviver com professores que são filósofos.

Marco Zingano, professor do Departamento de Filosofia:

É muito difícil redigir uma nota para anunciar o falecimento do professor José Arthur Giannotti. À imensa dor que todos sentimos acrescentam-se de imediato a consciência de uma perda irreparável, o reconhecimento de uma figura ímpar, a visão, nestas terras brasileiras por vezes tão pantanosas, de um gigante moral e intelectual que tomba como um herói homérico que lutou incansavelmente em prol da reflexão, em nome da verdade, que honrou como ninguém a integridade ética de um pensamento altamente exigente e, ao mesmo tempo, exuberante. Poderia citar as suas diversas condecorações, mencionar um a um seus tantos livros que pautaram a reflexão filosófica brasileira para tantas gerações, os seminários em que nos transportava com tanta maestria às mais delicadas e cogentes reflexões, suas intervenções de natureza política de extrema lucidez, seus comentários ácidos e penetrantes sobre a alma brasileira, sua sensibilidade maximamente aguçada às questões fundamentais, ao que de fato importa: o belo, a verdade, o bem. Deixarei tudo isso de lado, pois imagino o sorriso tipicamente italiano que faria ao escutar tal relato, o gesto seguro de uma modéstia, uma real modéstia, para indicar que nada ainda foi dito: Giannotti estava sempre à nossa frente, estava muito além de todos nós, via o que não conseguíamos ver e, mesmo assim, se dedicava inteiramente a nos fazer ver o que somente ele conseguia vislumbrar. Assim era Giannotti: inescapavelmente solitário em sua capacidade de ver o que foge a tantos, sempre voltado, no entanto, a nos instruir, a nos fazer ver, mas sempre certo de que entrevê o que é fugaz e instável, pois está em constante diálogo interno com seu próprio daimon e sua implacável crítica. Assim é o filósofo.

Não posso deixar de mencionar sua generosidade exemplar, suas habilidades culinárias invejáveis, sua veia estética prodigiosa. Sobretudo, sua amizade indefectível porque profundamente humana. Gilles Gaston-Granger, Claude Lefort, Victor Goldschmidt, Jules Vuillemin, Gérard Lebrun tornaram-se de imediato seus amigos, para citar somente alguns. Bento Prado Júnior e Oswaldo Porchat, a despeito de todas as suas diferenças, formaram com Giannotti um trio que pôs São Paulo no centro das reflexões filosóficas mundiais, bem como da busca de justiça em um país de tanta desigualdade. A ditadura militar tentou destruir sua carreira, mas Giannotti fundou o Cebrap e lá criou um ambiente propício para pensar o Brasil que tanto amava, criando um programa de formação de quadros para tirar o País de seu atoleiro. Jamais cedeu às tentações do poder nem faltou com a verdade por acalentar algum projeto pessoal. Tudo nele era íntegro, verdadeiramente íntegro, profundamente íntegro. É esta a imagem que guardo dele, quando saí por última vez de um jantar e o vi, do alto da escada que levava ao seu gabinete de trabalho, acenar o adeus: um gigante homérico, um intelectual insubstituível, um homem que fez da vida a mais bela expressão da potência humana.

Luiz Henrique Lopes dos Santosprofessor do Departamento de Filosofia:

Giannotti foi uma das figuras mais importantes e fundamentais em todas as dimensões do que eu considero ser o trabalho intelectual. O pensamento filosófico de Giannotti é um dos mais consistentes e originais da segunda metade do século 20 e entrando pelos primeiros 20 anos do século 21 – porque, aos 90 anos, no ano passado, ele publicou o que considero um dos livros mais importantes nas últimas décadas na filosofia brasileira

E Giannotti teve um papel fundamental na formação de uma rede de investigação filosófica no Brasil. Ele foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, a sociedade que agrega os filósofos brasileiros. E ele sempre esteve disponível para participar de eventos, viajar, ministrar palestras. Ele constituiu algo que hoje parece trivial, mas que não era até os anos 1970: um sistema de comunicação na comunidade filosófica brasileira.

Além disso, ele teve um trabalho de formação excepcional, do qual eu me beneficiei. Giannotti foi uma das figuras mais importantes da minha formação. E sua influência foi muito importante para a formação de várias gerações de filósofos brasileiros desde os anos 1970. Mesmo aposentado compulsoriamente pela ditadura militar em 1970, continuou esse trabalho, não saiu do Brasil, continuou, com todas as dificuldades, no Cebrap.

E eu tive o privilégio de trabalhar com ele no programa de formação de quadros do Cebrap, que, durante mais de dez anos, participou ativamente da formação não apenas de filósofos, mas de pesquisadores de todas as áreas das ciências humanas: sociologia, antropologia, história, economia. As pessoas que tiveram o privilégio de ter a influência intelectual de Giannotti estão entre as mais importantes das ciências humanas no Brasil.

Finalmente, Giannotti foi um intelectual de participação pública muito importante. Nunca se furtou ao debate público em política e cultura, estava presente nos jornais. Enfim, foi um intelectual completo.

Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia:

O professor Giannotti representava um período da filosofia brasileira, e da FFLCH em especial, marcado por um profundo debate interno e por uma real capacidade de intervenção no debate público.

Ele era parte de um horizonte de debate muito forte, no Departamento de Filosofia, do qual faziam parte também Oswaldo Porchat, Ruy Fausto e Bento Prado Júnior, que foi um momento formador para todos nós. Ele era praticamente o último dessa geração. O falecimento dele nos faz também relembrar o quanto essa geração apresentou um modelo de debate muitas vezes virulento, mas também muito honesto em cada uma de suas posições, que deveria servir de horizonte para as gerações futuras.

Ele era uma parte de um horizonte intelectual fundamental da nossa faculdade devido ao diálogo interno muito forte e à disposição de intervenção social que todos eles tinham. Todos foram intelectuais públicos, cada um à sua maneira, que contribuíram para o debate nacional em momentos muito importantes. Essa constelação intelectual da qual ele faz parte deveria nos orientar como um modelo do que significa o intelectual em um país como o Brasil.


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