Potencial vacina para febre maculosa pode mirar controle do carrapato transmissor

A diminuição da densidade populacional do vetor pode interromper em grande parte a transmissão da doença para os seres humanos

 14/06/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 15/06/2023 as 14:59
Por

Potencial vacina para febre maculosa pode mirar controle do carrapato transmissor

A diminuição da densidade populacional do vetor pode interromper em grande parte a transmissão da doença para os seres humanos

 14/06/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 15/06/2023 as 14:59

Texto: Ivan Moraes Conterno

Arte: Carolina Borin Garcia e Simone Gomes

Os carrapatos Amblyomma sculptum foram tratados com um tipo específico de RNA para silenciar a proteína inibidora da apoptose, um tipo de morte celular programada, o que poderá ser a chave para uma vacina - Foto: Christopher Paddock e James Gathany/Centers for Disease Control and Prevention (CDC)

Um estudo realizado no Laboratório de Bioquímica e Imunologia de Artrópodes do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP revelou que a expressão de uma proteína durante a alimentação do carrapato-estrela (Amblyomma sculptum) é fundamental para a sua sobrevivência. Esses resultados apontam a proteína inibidora da apoptose, a morte celular programada, como um alvo promissor para o desenvolvimento de uma vacina contra o carrapato, que é vetor da febre maculosa brasileira. O artigo foi publicado na revista Parasites & Vectors e teve como primeira autora Marcelly Nassar, que realizou a pesquisa para sua dissertação de mestrado.

Aos menos três pessoas morreram recentemente após contraírem a bactéria transmitida pelo pequeno aracnídeo. As vítimas participaram do mesmo evento em uma fazenda no distrito de Joaquim Egídio, em Campinas (SP), no dia 27 de maio. A doença, que causa febre alta, inflamação nos vasos sanguíneos e outras complicações, pode matar principalmente se houver demora no diagnóstico e tratamento. 

Casos no Brasil

Casos no Estado de São Paulo

O número de casos registrados de Rickettsia rickettsii no Brasil são baixos devido à falta de diagnóstico, porém o índice de letalidade no Estado de São Paulo chegou a 76,39% em 2014 – Infográfico: Ivan Conterno – Fonte: Ministério da Saúde
 

A Rickettsia rickettsii, bactéria que causa a doença, é transmitida pela picada de carrapatos infectados. No Brasil, duas espécies desses aracnídeos transmitem a bactéria para humanos. O carrapato-estrela, utilizado no estudo, é o principal vetor, mas há também o Amblyomma aureolatum, que transmite a bactéria na região metropolitana da cidade de São Paulo. A Rickettsia rickettsii costuma permanecer nas populações de carrapatos pois coloniza os ovários, passando de uma geração para outra.

Na fase adulta, o carrapato se alimenta preferencialmente de cavalos e de capivaras, mas o número de casos no Brasil não justificaria a vacinação em pessoas. Se o alvo encontrado para a obtenção de um imunizante for promissor, o carrapato que se alimentar de um animal vacinado morrerá, interrompendo o ciclo de proliferação da bactéria. “A diminuição da densidade populacional dos carrapatos por uma estratégia vacinal, consequentemente, interromperia em grande parte a transmissão da doença para os seres humanos”, explica ao Jornal da USP Marcelly Nassar.

Proximidade de capivaras com populações humanas favorece a transmissão de bactéria letal por carrapatos, que podem ser controlados por estratégia vacinal – Foto: Julio Cesar Bazanini/USP Imagens

“É uma estratégia vacinal diferente, mas espera-se que a resposta no hospedeiro seja a mesma”, descreve a pesquisadora. Atualmente, ela faz testes da aplicação do imunizante em animais em sua pesquisa de doutorado.

Alta letalidade da doença

Nos humanos, a bactéria coloniza as células dos vasos sanguíneos, o que causa uma inflamação (vasculite), cuja progressão pode ser fatal. A vasculite também leva ao surgimento de manchas na pele — ou máculas, e daí o nome da doença (“febre maculosa”) — que se espalham pelo corpo. Nem todas as pessoas infectadas têm máculas e os sintomas iniciais são muitos confundidos com outras viroses, como a dengue.

Nos primeiros dias, a pessoa infectada tem febre e sente dores na cabeça e no corpo. Se o paciente não tiver percebido que foi picado ou não se lembrar de dizer isso durante o atendimento médico, dificilmente haverá a suspeita de um quadro de febre maculosa. Assim, não será prescrito o antibiótico adequado, a doxiciclina.

O diagnóstico para febre maculosa é feito por reação de imunofluorescência indireta, que só é confiável após mais de dez dias a partir dos primeiros sintomas, quando o corpo já produziu anticorpos. Portanto, até a obtenção do diagnóstico positivo para Rickettsia rickettsii, possivelmente o tratamento com antibiótico não será mais eficaz. “Controlar a população do vetor, portanto, é a melhor medida para controlar a doença e evitar mortes”, explica a veterinária.

A pesquisadora explicou que poucos casos são registrados por conta da falta de dados. Dado o cenário, bloquear o vetor é a melhor medida para combater a doença. “Não temos um diagnóstico laboratorial efetivo nos primeiros dias da doença. Para esperar um diagnóstico positivo para Rickettsia rickettsii, possivelmente o tratamento não será mais eficaz”, diz ela.

Carrapato-estrela de barriga para cima – Foto: Laboratório de Bioquímica e Imunologia de Artrópodes

Andréa Fogaça
 - Foto: ResearchGate
Andréa Fogaça - Foto: ResearchGate

A professora Andréa Fogaça, que orientou a pesquisa, ressalta ao Jornal da USP que o risco aumenta em trilhas e piqueniques em parques com a presença de carrapatos infectados, pois eles podem estar na vegetação. “A maior prevalência da febre maculosa no Sudeste está relacionada com a aproximação das populações de capivaras, um dos principais hospedeiros amplificadores da bactéria na natureza. No Sudeste, as capivaras encontram fontes de água e alimento sem predadores e acabam se proliferando”. Além dos impactos na saúde pública, o carrapato-estrela também causa prejuízos econômicos devido ao seu aumento em populações de gado.

Experimentos

Os pesquisadores trataram células do carrapato com uma fita dupla de RNA para a proteína inibidora de apoptose (IAP), diminuindo a produção da proteína que, por sua vez, inibiria a morte celular programada (apoptose) nos carrapatos – um mecanismo natural que elimina células supérfluas ou defeituosas. Sendo assim, o RNA favorece a morte dos carrapatos quando eles se alimentam de sangue, possivelmente pela ativação da apoptose.

A hipótese é que o mecanismo desenvolvido seria deflagrado somente quando os carrapatos se alimentassem do sangue de um animal. Como previsto, ao picarem coelhos usados nos testes, quase todos os carrapatos tratados morreram, enquanto que os carrapatos não tratados com o RNA que silenciava a produção da proteína, em grande parte, sobreviveram.

Mortalidade dos carrapatos alimentados – Infográfico: Carolina Borin Garcia/Jornal da USP – adaptado do artigo em Parasites & Vectors

Próximos passos

Marcelly Nassar - Foto: Arquivo Pessoal

A partir do estudo, pedaços dessa proteína (peptídeos) estão sendo produzidos para imunizar animais que produzirão anticorpos contra ela. O estudo faz parte da pesquisa de doutorado de Marcelly, atualmente em desenvolvimento. Os anticorpos devem neutralizar a proteína, levando à morte do carrapato ao se alimentar, assim como o tratamento feito durante a etapa anterior.

O artigo contou com apoio de vários órgãos de fomento, sendo o principal a Fapesp. Todos os testes com animais foram realizados de acordo com a Lei 11.794/2008, que estabelece procedimentos para o uso científico de animais, e aprovados pela Comissão de Ética no Uso dos Animais (CEUA) da USP.

Mais informações: e-mails deafog@usp.br, com Andréa Fogaça, e nassar.marcelly@usp.br, com Marcelly Nassar.

Estudo aponta caminhos para criar vacinas contra doenças causadas por carrapatos

Leia Mais

No Pantanal, 79% da área habitada por onças foi atingida pelo fogo em 2020

Vacina em spray desenvolvida pela USP contra covid-19 pode estar disponível em 2023


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.