Tradição monárquica inglesa tem papel importante no cumprimento da Constituição

Por trás da beleza das cerimônias, da forma de agir e das vestimentas reais, as tradições são muito mais do que apenas heranças históricas

 13/01/2023 - Publicado há 1 ano
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O papel da monarquia tem sido o de garantir a continuidade e a estabilidade do país, para que continue funcionando constitucionalmente – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Keir Gravil e Michael Garnett/Flickr


“Nada parece mais antigo e ligado a um passado imemorial do que a pompa que cerca a realeza britânica em quaisquer cerimônias públicas de que ela participe.” Como já dizia Eric Hobsbawn, em A Invenção das Tradições, a monarquia britânica encanta muitos ao redor do mundo.
Com a morte de Philip, Duque de Edimburgo, em 2021, seguido da de Elizabeth II em setembro do ano passado, o mundo voltou os olhos para todo o cerimonial do funeral e, logo em seguida, para a nomeação de Charles III como o novo monarca. As tradições que cercam a família e a possibilidade de acompanhar cerimônias que seguem diretrizes seculares despertam o interesse, em especial daqueles que nunca viveram sob um regime monárquico. 

Kai Enno Lehmann – Foto: Reprodução/ResearchGate

“Os países europeus têm uma ligação muito forte com o passado. O elemento do ritual é muito importante, os símbolos com o passado são elementos muito fortes para o povo britânico”, explica o professor em Literatura Inglesa do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, John Milton.  Os monarcas, assim como tudo que o rodeia, têm um papel fundamental na continuidade, estabilidade da nação e na manutenção da identidade nacional do reino. “O papel da monarquia tem sido garantir a continuidade e a estabilidade do país, para que continue funcionando constitucionalmente”, lembra Kai Enno Lehmann, livre docente pela USP e professor de Relações Internacionais no IRI (Instituto de Relações Internacionais). 

Por serem herdeiros do trono e reinar até a morte, têm um compromisso de vida com o cargo. Assim, não estão presos à limitação de um mandato presidencial para fazerem todas as mudanças possíveis e atenderem a um interesse do partido a que pertencem ou à sua base eleitoral. Isso confere aos monarcas uma visão prolongada de “governo” e de atuação. Elizabeth II, tendo assumido o trono em 1952, tinha um conhecimento extenso de conflitos anteriores, movimentações políticas, documentos e memorandos, assim como lições aprendidas de falhas políticas anteriores. Assim, via a política e os acontecimentos com um conhecimento muito maior do que os parlamentares e primeiros-ministros. Isso a tornava uma importante peça de consulta e opinião antes da tomada de decisões extremas ou difíceis. 

A monarquia britânica é uma instituição permanente, que remonta ao século 11. Como figura representativa dela, Elizabeth II conhecia melhor do que ninguém seu reino e seus problemas.

Papel do monarca 

A rainha era, e agora o rei Charles III é chefe de Estado e chefe simbólico. Quem exerce o poder de governar, entretanto, é o chefe de governo, que, no caso do Reino Unido tem como líder o primeiro-ministro.  O chefe de governo, em especial na Inglaterra, tem as mesmas atribuições do Poder Executivo. O partido que comandará o Parlamento é escolhido por eleições democráticas e, na maioria das vezes, o primeiro-ministro é o líder desse partido. Ganha aquele que tiver mais cadeiras nas eleições gerais. 

Atualmente, quem ocupa o cargo é o conservador Rishi Sunak, que assumiu após a renúncia de Liz Truss com menos de dois meses de governo. Da mesma forma, ela tinha assumido antes de Boris Johnson renunciar em meio aos escândalos sexuais no Partido Conservador e de festas durante o lockdown.  O papel da monarquia constitucional britânica é quase inteiramente cerimonial. A figura do monarca é tida como representante de todo o povo daquela nação e tem como função assegurar a continuidade da ordem constitucional e o bem-estar entre os poderes parlamentares. Entregar medalhas, controlar as Forças Armadas, receber embaixadores, aprovar os primeiros-ministros e aprovar atos do Parlamento são algumas das atribuições do rei.

O poder de decisão e atuação não reside inteiramente na coroa, há muito tempo, no Reino Unido, mesmo antes da Revolução Gloriosa de 1688, que instituiu a monarquia constitucional no território. A Magna Carta, de 1215, já limitava o poder do líder real, o que diferenciou, entre outras coisas, esse tipo de monarquia daquela absolutista. “Em certas crises, o monarca pode exercer um papel importante, mas eu acho que, nas monarquias europeias, o poder [do monarca] é muito limitado”, lembra Milton. O professor recorda a atuação do Rei Juan Carlos I da Espanha (1975-2014), durante a tentativa de golpe militar em 23 de fevereiro de 1981. 

Na ocasião, pediu para que a ordem constitucional e a legalidade vigente fossem respeitadas. Em seu discurso, televisionado a todos os espanhóis, disse: “A coroa, símbolo da permanência e unidade da pátria, não pode tolerar, de forma alguma, ações ou atitudes de pessoas que pretendem interromper, por meio da força, o processo democrático que a Constituição votada pelo povo espanhol determinou através de referendo”.

Opinião política e monarquia se misturam?

John Milton – Foto: Reprodução/Fapesp

A monarquia britânica é considerada neutra e, durante seu reinado, a então Rainha Elizabeth II não expressava de maneira contundente suas opiniões e posições políticas. Isso está ligado a uma das características mais importantes das monarquias constitucionais: se manter acima da política.  O Rei Charles III, entretanto, por ter passado mais da metade de sua vida como príncipe, adotou algumas posições e opiniões durante esses anos. Não por menos, era chamado de príncipe ambientalista: desde a década de 70 vem dando declarações, alertando a população sobre os malefícios da intervenção humana e da liberação de gases por conta de combustíveis fósseis ao meio ambiente. 

Por conta de seu ativismo ambiental, Charles III pode ser responsável por uma mudança no comportamento apolítico que tanto marcou o reinado de sua mãe. Até o momento, portanto, “parece que ele [Rei Charles III] está copiando o comportamento de sua mãe, que quase nunca falava, dava opiniões fortes sobre eventos políticos”, analisa Milton. “A Rainha Elizabeth conseguiu se manter acima da política durante todo o seu reinado”, complementa o professor. É necessário esperar um pouco mais de tempo para analisar se o rei seguirá com suas declarações contundentes ou se manterá a linha apolítica da monarquia britânica. 

O papel da tradição para a continuidade

Retomando a ideia expressa por Eric Hobsbawn, as tradições monárquicas britânicas são, realmente, antigas. Algumas, na contramão, foram criadas recentemente e estão dentro do escopo de “passado imemorial”, como colocado pelo próprio autor. Para ele, a tradição é continuidade e é simbólica. Manter cerimônias, toda a pompa, a troca da guarda, as festas nos jardins reais, entre outros, fazem parte de uma estratégia de preservação e conservação da monarquia e da continuidade constitucional.  “Eu acho que é muito específico para a Inglaterra essa ideia, essa continuidade das tradições: ela representa uma ligação ao passado supostamente melhor do que o país é  hoje em dia. Então, nesse sentido, eu acho que, para o entendimento da nação, de quem nós somos, a continuidade dessas tradições é muito importante. A  família real e a instituição representam algo que no dia a dia o país já perdeu”, explica Kai Lehmann.

A própria identidade nacional e de pertencimento está ligada a essas tradições, como salienta o professor de Relações Internacionais: “Manter essa tradição diante de tudo aquilo que estava dando, ou que está dando errado no país, é como evocar um sentimento de ser verdadeiramente parte daquele país”.


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