Processo narcísico é essencial para a constituição de cada um dos indivíduos

Especialistas avaliam que o narcisismo é uma experiência pela qual passam todos os sujeitos no processo de construção do “eu”

 26/09/2023 - Publicado há 7 meses
Por
O processo narcísico constitui-se da soma de um alto investimento psíquico em si próprio
Logo da Rádio USP

O transtorno de personalidade narcisista é um fenômeno psíquico extremamente complexo e dinâmico, que apresenta relação direta com a constituição do indivíduo, sendo possível observar que o narcisismo configura-se como uma experiência pela qual todos os sujeitos sociais passam durante a formação do “eu”. 

Valéria Barbieri, professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo, explica que, apesar do termo ter assumido uma conotação negativa para a maioria dos indivíduos, ele se apresenta como um dos alicerces essenciais para a construção da personalidade. “Ele é um fenômeno normal e importante para a nossa constituição e para a nossa saúde mental. Ele é necessário para nossa sobrevivência, porque, se você não se amar e cuidar de si próprio, vai ser muito difícil viver”, comenta. 

Processos 

Dessa forma, a professora avalia que os problemas começam a aparecer quando esse fenômeno torna-se um pilar essencial ou um aspecto dominante na vida do sujeito — fator que dificulta o desenvolvimento emocional e a construção de laços com outras pessoas por parte do indivíduo. “Como o narcisismo é um fenômeno natural e necessário, todos nós nascemos com uma dose dele. No início da vida, quando nós éramos bebês, as nossas primeiras relações foram de natureza narcisista”, explica Valéria. Assim, quando a criança nasce, a sua personalidade é confundida com a da mãe, fator que faz parte do processo de funcionamento primitivo do bebê. Para estabelecer esse tipo de  vínculo com seu filho, a professora explica que é necessário que a mãe realize uma espécie de regressão emocional para que ela compreenda as necessidades do bebê e as atenda. 

Valéria Barbieri – Foto: LEEPS/FFCLRP-USP

Nesse momento, para o bebê, não há uma diferença entre o mundo e a mãe, fator que faz com que essa relação se estabeleça  de forma narcísica — o que, na psicologia, pode ser denominado de narcisismo primário. Com o tempo, a criança passa a conhecer o mundo ao seu redor e a relação narcísica perde a sua força, tornando-se cada vez mais realista. “Essa é a tendência no desenvolvimento normal, porém, para que ele aconteça, a criança deve ter sido suprida em dose suficiente do seu narcisismo primário”, adiciona a especialista. Assim, é importante que esse desenvolvimento aconteça para que o sujeito veja o mundo como semelhante a si mesmo, fator que facilitará o processo de superação do indivíduo com relação às frustrações que virão posteriormente. 

“Quando o narcisismo primário não é suprido de forma suficiente ou quando ele é atendido em excesso, pode ser criado um complexo em que a pessoa passará a vida fazendo com que os outros atendam às suas necessidades narcísicas”, avalia Valéria. A especialista também aponta a existência de um segundo tipo de narcisismo, que aparece em situações nas quais o sujeito é capaz de estabelecer relacionamentos que consideram as características reais de outros indivíduos. 

Paulo Endo, professor do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo, reforça que a psicanálise busca compreender os processos que envolvem as representações formadoras do “eu” no lugar de uma caracterização. “No senso comum, o narciso se confunde com uma espécie de predicado ou de uma adjetivação, em geral, de caráter negativo”, avalia.  O professor explica, assim, que o processo narcísico constitui-se da soma de um alto investimento psíquico em si próprio, juntamente com uma série de processos complexos que envolvem o investimentos de outras pessoas. 

“E aí entra uma peça muito importante nesse processo, que são os ideais. Os ideais que ingressam a nossa experiência psíquica, como de uma maneira ou de outra, um certo horizonte que nós perseguimos para sermos investidos por nós mesmos e pelos outros”, discorre Endo. Assim, a busca por esses ideais passa por um processo concomitante entre o próprio reconhecimento e o reconhecimento do outro sobre o indivíduo. 

Desafios

Em situações nas quais o narcisismo torna-se uma problemática, é possível observar que os sujeitos não conseguem alcançar uma autonomia pessoal. Por isso, de acordo com Valéria, em alguns casos, ele é capaz de ultrapassar os relacionamentos simbióticos, mas não atinge o sentimento de ser uma pessoa independente. Por esse motivo, uma das maiores angústias encontradas por esses sujeitos é a percepção de que o outro não estará sempre à sua disposição para atendê-lo. Em alguns casos, a atenção do indivíduo não é voltada para uma pessoa, mas para uma situação social, um trabalho ou um fator de prestígio — que é conhecido como objeto anaclítico. 

“Outra característica marcante de indivíduos com problemática narcisista diz respeito à existência de grandes ideais e de exigências para si mesmo e para os outros. Isso acontece porque a perfeição que existia no relacionamento simbiótico em que o bebê era o rei vai se perdendo diante das críticas e das repreensões que começam a chegar na vida da criança”, complementa a professora. Com isso, é comum que o sujeito tente corresponder a essas exigências que, em sua maioria, apresentam-se de forma inatingível. 

Paulo César Endo – Foto: Reprodução/IEA-USP

Parentalidade 

Valéria comenta ainda que o indivíduo narcisista é altamente dependente do olhar do outro, já que sua personalidade depende da apreciação externa. “Ele tende a seguir o que está em voga, o que vem de fora e o que é socialmente valorizado. Ele tolera muito mal a frustração e os limites, por ser constantemente assombrado pelo abandono do objeto ou da pessoa de que depende, ele tem de estabelecer relacionamentos baseados no controle e não suporta qualquer movimento de diferenciação do outro”, reflete a especialista. 

Quando esses indivíduos se tornam pais, portanto, é comum que diferentes características que desejavam ser alcançadas por esses sujeitos sejam projetadas em seus filhos — fazendo com que a criança se torne o objeto narcísico de seus pais. Dessa forma, segundo a professora, é comum que sejam impostas exigências inatingíveis às crianças e adolescentes que, muitas vezes, não recebem atenção necessária acerca de seus sofrimentos e dificuldades. “Existe uma inversão de papéis e funções em que são os filhos que devem atender às necessidades dos pais e não o contrário”, complementa. Além disso, observa-se que as dificuldades de relacionamento entre filhos e pais narcisistas ganham força durante a adolescência, período em que as diferenças e a necessidade de autonomia tornam-se mais marcantes. 

“Os filhos se veem sufocados em sua existência, sem condições de dispor eles mesmos de um narcisismo mínimo que lhes assegure uma existência individual. Em situações extremas, os filhos podem apelar para o distanciamento, podendo chegar à ruptura com os genitores para poderem sobreviver do ponto de vista emocional”, avalia Valéria. 

Acompanhamento psicológico 

Para os indivíduos que passam por situações que decorrem do narcisismo, o acompanhamento psicológico parece ser essencial, sendo, em muitos casos, a única saída para a preservação da saúde mental de todos. Valéria explica, dessa forma, que, para os pais, é necessário buscar compreender os motivos que colaboraram com a inflação das características narcísicas.

Para os filhos, por outro lado, seria necessário criar um espaço seguro em que seja possível para esses indivíduos exercer a expressão de suas individualidades para a projeção de um caminho singular. Além disso, o professor Paulo Endo também avalia que a elaboração de uma nova percepção do sujeito para além de si próprio tende a auxiliar a produção da experiência da alteridade. Assim, é a partir do processo de limitação do indivíduo diante dos outros que pensam, sentem e desejam de uma forma diferente que uma expansão pode ser produzida. 

“É quando meu universo, que perduraria em torno do “eu”, se expande também em direção ao outro, se complementa, se enriquece e se complexifica”, adiciona Endo. Assim, a experimentação da diferença, do risco e da novidade acerca daquilo que é completamente alheio contribui com a diminuição de uma rejeição a tudo aquilo que se apresenta de forma diferente de si próprio.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo


Jornal da USP no Ar 
Jornal da USP no Ar é uma parceria da Rádio USP com a Escola Politécnica e o Instituto de Estudos Avançados. No ar, pela Rede USP de Rádio, de segunda a sexta-feira: 1ª edição das 7h30 às 9h, com apresentação de Roxane Ré, e demais edições às 14h, 15h e às 16h45. Em Ribeirão Preto, a edição regional vai ao ar das 12 às 12h30, com apresentação de Mel Vieira e Ferraz Junior. Você pode sintonizar a Rádio USP em São Paulo FM 93.7, em Ribeirão Preto FM 107.9, pela internet em www.jornal.usp.br ou pelo aplicativo do Jornal da USP no celular. 

 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.