Novo recorde mundial de refugiados reflete desigualdades estruturais entre nações

Segundo Jameson Martins, políticas internacionais deveriam ser aplicadas de forma mais justa entre diferentes grupos de deslocados

 27/06/2023 - Publicado há 10 meses
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Para compreender a movimentação forçada de indivíduos é essencial o entendimento a respeito de suas condições – Foto: Agência Brasil
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Segundo recente relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU), o mundo atingiu um novo recorde de deslocamentos forçados em 2022. Cerca de 108 milhões de indivíduos encontram-se nessa situação — com um aumento de 19 milhões de pessoas em comparação com o ano anterior. Entre os diferentes motivos para o aumento exponencial desses valores se encontram a guerra da Ucrânia, a atualização de informações sobre os refugiados afegãos e a eclosão de novos conflitos, como o presente no Sudão

Os novos dados revelam que, entre todos os indivíduos que foram deslocados forçadamente, cerca de 35 milhões precisaram sair de seus países de origem para garantir sua sobrevivência, enquanto 62 milhões tiveram que realizar algum deslocamento interno. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) revelou também que a expectativa para os dados de 2023 não é positiva, uma vez que o número de refugiados já  ultrapassou os 110 milhões na metade deste ano. 

Jameson Martins, pesquisador em Saúde Global pela Faculdade de Saúde Pública da USP com foco em Políticas de Saúde para Migrantes Internacionais, explica que fatores que fazem as pessoas migrarem são complexos e pensar em soluções para a questão deve ser nos âmbitos local e internacional.

Deslocamento forçado 

Para compreender a movimentação forçada de indivíduos é essencial o entendimento a respeito de suas condições. Desde 1951, com o estabelecimento do Estatuto do Refugiado, todos os indivíduos que estão fora de seu país de origem “devido a fundados temores de perseguição relacionado a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados” são considerados refugiados. 

Jameson Vinícius Martins da Silva – Foto: Currículo Lattes

Entre os diferentes motivos para o deslocamento forçado de pessoas, Martins explica que os conflitos armados configuram-se como um fator preponderante para forçar as pessoas a empreenderem essas rotas migratórias. “No mundo complexo em que vivemos, nós temos outros fatores forçando as pessoas a se deslocarem. Um deles é a ausência de meios de subsistência, particularmente em países muito pobres que estão sendo afetados diretamente pelos fenômenos da crise climática”, comenta. Assim, países como Somália, Etiópia e Paquistão vêm passando por fenômenos de desertificação e chuvas torrenciais que geram um volume importante de refugiados. 

O especialista reflete ainda que, apesar da existência de aparatos jurídicos para o acolhimento desses indivíduos, quando o debate fundamenta-se nas questões climáticas, não há uma legislação específica para a proteção internacional dessas pessoas. Além disso, a problemática apresenta relação direta com questões econômicas, movimentando ainda mais esses indivíduos que buscam melhores condições e meios básicos de sobrevivência.

Origem e destino 

O relatório destaca, entre diferentes informações sobre o perfil dos grupos deslocados, a origem e o destino final desses sujeitos. Assim, nota-se que 70% das pessoas em movimentação forçada são abrigadas em países vizinhos e 76% se encontram em países de média ou baixa renda. Nota-se, portanto, uma correspondência geográfica nesses casos, exemplo disso pode ser observado pelo fato de a Síria ser listada como o país com o maior número de refugiados (6 milhões) e a Turquia, seu país vizinho, ser o que recebeu o maior número de pessoas (3,6 milhões). 

Além da Turquia, os países que mais receberam esses grupos foram: Irã (3,4 milhões), Colômbia (2,5 milhões), Alemanha (2,1 milhões), e Paquistão (1,7 milhão). Observa-se também que 52% dos refugiados são originários de apenas três países: Síria (6,5 milhões), Ucrânia (5,7 milhões) e Afeganistão (5,7 milhões). “Ao contrário do que pode fazer parecer a cobertura midiática, a enorme maioria dos países desenvolvidos e mais ricos, com mais recurso para fazer esse acolhimento, não concentra a maioria dos refugiados do mundo”, reflete Martins. A Alemanha é uma das poucas exceções ao caso, já que, por decisões políticas e pela influência da União Europeia, vem facilitando o trânsito de ucranianos em direção aos países do bloco econômico. 

Conflitos

A guerra da Ucrânia é apresentada como um dos principais conflitos atuais e o seu encerramento não parece contar com um fim próximo. Segundo Jameson Martins, há uma série de aspectos geopolíticos estratégicos que parecem bloquear um horizonte previsível de cessação do conflito armado. 

Em um cenário ideal, a redução do número de refugiados no mundo seria estabelecida por meio da redução do número de conflitos armados – Foto: Agência Brasil

 

É importante notar também que, apesar de ser protagonizada no território ucraniano, a guerra apresenta dimensões políticas que se expandem para além dessa área. “A gente está falando de uma influência fortíssima dos interesses dos países da União Europeia e dos Estados Unidos em fazer frente a um expansionismo da Rússia e a Rússia se justificando em termos de se sentir ameaçada pelo avanço geopolítico do Ocidente no Leste Europeu”, discorre o pesquisador.  

Martins analisa que, no momento, pensar nas consequências desse conflito para os refugiados é essencial. Dessa forma, foi possível observar que, para os ucranianos, a garantia de acolhimento foi feita de forma assertivamente positiva. “Você vê uma política de dois pesos da União Europeia. Quando se trata dos fluxos de países de fora da Europa nota-se uma série de barreiras para a migração e para a possibilidade de trânsito”, explica. Isso não significa que o tratamento dado aos refugiados ucranianos foi indevido, mas que o mesmo procedimento deveria ser garantido para outros grupos que procuram o mesmo tipo de proteção. Assim, nota-se que a situação dos refugiados amplia-se também para outros debates a respeito da garantia de direitos humanos e políticas internacionalmente estabelecidas. 

Futuro 

Em um cenário ideal, a redução do número de refugiados no mundo seria estabelecida por meio da redução do número de conflitos armados, contudo, o especialista explica que, nos últimos tempos, estes estão aumentando em decorrência de diferentes aspectos políticos, históricos, culturais e econômicos. Assim, pensar e avaliar as formas como os refugiados estão sendo tratados deve se tornar o centro de debates sobre a temática. “Havendo conflitos e riscos à integridade física das pessoas, o que a gente deveria esperar são políticas migratórias, principalmente dos países mais ricos”, esclarece o pesquisador. 

Nos últimos anos, um posicionamento contrário a esse é o que vem sendo observado com relação aos países mais desenvolvidos. Tornou-se comum a criação de mecanismos de afastamento e de impossibilidade de entrada de refugiados, como a terceirização de fronteiras. Dessa forma, Estados ricos delegam a outros países o recebimento desses sujeitos. Martins explica que uma consequência direta dessa contenção e de outras burocracias institucionais é o aumento do risco de vida por meio da busca por rotas alternativas.

“Quando você impede que as pessoas cheguem ao território e tenham a possibilidade de fazer a solicitação do pedido de refúgio, você está violando a regra da não recusa (non refoulement)”, declara. Para além do recebimento desses grupos em países signatários é também importante avaliar as condições de tratamento, sendo necessário o acesso aos meios básicos para uma vida com dignidade. 

A criação de leis para a normalização do trânsito dessas pessoas é primordial para uma melhora nas condições presentes. Juntamente com elas, Martins explica que é importante o fornecimento de um acesso facilitado com saúde, alimentação, saneamento, educação, empregabilidade etc. “A gente também poderia pensar que, mais adiante, a gente pode ter um mundo economicamente mais equilibrado, de modo que as pessoas não seriam forçadas a migrar, mas poderiam simplesmente escolher”, finaliza o pesquisador.


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