Veredas de um fenômeno chamado esporte

Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP) e membro da Academia Olímpica Brasileira

 13/02/2019 - Publicado há 5 anos
Katia Rubio – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Começo minha colaboração neste ano de 2019 já no mês de fevereiro. Primeira quinzena ainda, mas pelo andar da carruagem, há quem esteja pedindo o impeachment deste ano que mal se anuncia e saltar logo para 2020, fazendo de conta que tudo não passou de um incidente. O imponderável parece fazer mesmo parte da nossa existência com mais frequência que os eventos ordinários.

Acidentes e tragédias não escolhem dia, hora nem lugar para acontecer. Simplesmente acontecem, fazendo de uma eventualidade uma desgraça. A onipotência humana levou os seres vivos, ditos racionais, a achar que é possível ter o controle absoluto de tudo aquilo que os cerca. Por isso a busca desenfreada pelos limites, sejam eles materiais ou não. Certo é que, mesmo diante de tanto avanço, a morte é ainda a única certeza na vida.

Nem mesmo Guimarães Rosa seria capaz de desafiar essa lógica, colocando na boca de Riobaldo essas coisas inexplicáveis que insistem em acontecer, afirmando que natureza da gente não cabe em nenhuma certeza. De tantas coisas acontecidas nessas poucas semanas de 2019, o incêndio no CT do Flamengo apresenta para a sociedade um pouco do que é e acontece no esporte de base neste país. Não é prerrogativa do futebol buscar crianças e jovens talentosos para especializá-los em uma modalidade esportiva que exige a perfeição, conquistada com gestos repetitivos à exaustão.

A palavra mais utilizada para definir o leitmotiv dessa busca é “sonho”. Vivêssemos em uma sociedade na qual o esporte gozasse de prestígio e respeito, certamente essa palavra seria substituída por realização profissional ou oportunidade. SQN. Sonho é a expressão perfeita para designar algo quixotesco, coisa de lunáticos em um corpo antimetafísico, como retratado pelo Barão de Munchausen em seu encontro com o Rei da Lua. Ser sonhador não tem idade, origem nem classe social e a busca da oportunidade para chegar ao lugar de ídolo em um clube leva muitos a se sujeitarem a agarrar a oportunidade que se lhes apresenta mesmo a centenas de quilômetros da terra natal.

Depois de ouvir mais de um milhar de histórias de atletas que chegaram aos Jogos Olímpicos, não é difícil afirmar que a migração e os deslocamentos necessários para chegar aos centros de treinamento com condições de boa especialização são mais uma regra do que exceção no esporte brasileiro. A concentração nas regiões Sul e Sudeste de locais apropriados para a realização de uma carreira atlética torna implícito o distanciamento das origens. E o distanciamento físico é ainda o início de um processo de perda de identidade e necessária construção de novas identidades que estarão diretamente associadas ao lugar a que se chegará nessa jornada heroica. Solidão, fome, medo e submissão são guardados dentro das mochilas e da alma daqueles que se sujeitam às normas impostas para materializar um sonho.

Fato é que nesse processo há fatores intervenientes sobre os quais pouco ou nada se fala ou publica porque colocam em xeque o sistema esportivo como um todo, que é a precarização da carreira esportiva no hiato da profissionalização.

Muitos atletas relatam os impactos sofridos na chegada à nova cidade, ao clube, e todas as mazelas vividas em ambientes bem e mal estruturados para receber pessoas de origens tão distintas. Meninas e meninos, protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que impede o exercício profissional antes dos 16 anos, mas não restringe a prática esportiva profissionalizada, afinal atleta profissional no Brasil é apenas o jogador de futebol, estão em diferentes alojamentos não menos precários do que os meninos do Flamengo. O fogo do Ninho do Urubu, oficialmente chamado de Centro de Treinamento George Helal, parece ter iluminado uma questão nevrálgica para o esporte brasileiro: o cuidado com a base. Nenhuma colheita se dá sem que haja uma boa semente.

As condições precárias de alojamentos de centros de treinamento e de competições parecem fazer parte da tradição da vida de atletas. É como se sobreviver a essas condições fosse um entre mais do que doze trabalhos como no mito de Hércules. Matar o Leão de Nemeia, limpar os estábulos de Augias, cortar a cabeça da Hidra de Lerna, caçar o javali de Erimanto, a corsa de Cerínia e os bois de Gerião, matar as aves do Lago Estinfalo, dominar o touro de Creta, domar as éguas de Diomedes, obter o cinturão da rainha Hipólita, buscar Cérbero e colher os pomos de ouro do Jardim das Hespérides parecem pouco diante da necessária convivência com agentes pouco éticos que comercializam atletas, ainda crianças, como se fossem mercadorias. Alimentar-se com comida pouco apropriada, dormir em colchões dispostos em arremedos de camas em paródias de alojamentos chamados genericamente de “Centros de Treinamento”, isso sim é tarefa heroica, sem, contudo, contar com a ajuda de divinos que têm como função proteger heróis.

A vida privada do atleta não ganha espaço na mídia porque não tem glamour. O sonho se materializa com dor, odor e suor e o encanto da vitória minimiza todo o sofrimento do caminho percorrido até ali. A alegria incontida do momento do pódio parece ter um efeito entorpecente, que dissipa uma história de miséria e provações. E o atleta, como um refém do sistema, reproduz a atitude daqueles que sofrem de síndrome de Estocolmo, ou seja, para se defender dos danos sofridos durante o processo de intimidação, desenvolvem simpatia – ou mesmo amor – pelo agressor.

Já é tempo de mudar esse cenário. Clubes e instituições esportivas começam a organizar comitês de ética e outros canais de acolhimento para que agravos e erros sejam denunciados. E o resultado é que as denúncias, antes varridas para baixo do tapete, são agora apuradas e os responsáveis pelos abusos começam a receber a devida punição. Timidamente atletas e responsáveis começam a se perceber como seres de direito, ainda que o sonho de chegar ao pódio seja maior do que a própria honra. Mas ainda há um longo caminho a percorrer. Atletas, familiares e responsáveis precisam entender que denunciar a precariedade de um centro de treinamento ou o comportamento abusivo de um técnico é tão necessário ao desenvolvimento do atleta como o treinamento e as competições. Quem luta por um direito tem o poder de enfrentar qualquer adversário em quadra, campo, piscina ou ginásio. Naturalizar a precariedade fragiliza o sistema esportivo como um todo e coloca carreiras e vidas de meninas e meninos em risco.

O incêndio no CT do Flamengo foi desnecessário caso os dirigentes fossem mais cuidadosos e atentos às necessidades daqueles que já são e porventura serão a glória do clube. E ainda parafraseando Guimarães Rosa: “A vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel”.

.

 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.