O protesto que marca a memória dos Jogos Olímpicos do México

Katia Rubio é professora da Escola de Educação Física e Esporte da USP e membro da Academia Olímpica Brasileira

 16/10/2018 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 23/10/2018 as 14:45

Em 1968, o México estava atolado em protestos contra o regime de Diaz Ordaz, apoiado pelos EUA – Foto: Sergio Rodriguez / OTRS via Wikimedia Commons – CC

.

Katia Rubio – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Há 50 anos os Jogos Olímpicos eram realizados pela primeira vez na América Latina, em um país não industrializado, ainda que no Hemisfério Norte. Claro está que essa realização envolveu os desejos e intenções de uma instituição que sempre se pretendeu mais universal que as Nações Unidas: o Comitê Olímpico Internacional. A escolha da Cidade do México como sede dos Jogos Olímpicos de 1968 contou com forte apoio do então presidente do COI, Avery Brundage, e venceu a postulação das cidades de Detroit (EUA), Lyon (França) e Buenos Aires (Argentina). Longe de ser uma unanimidade, a vitória mexicana levou a protestos, principalmente dos países anglo-saxões, grupo que historicamente dominou a política olímpica e determinou as sedes das competições. Os embates entre as grandes potências, que viviam o auge da Guerra Fria, favoreceram o acirramento dos ânimos e afirmavam a polarização também na esfera esportiva.

Os ventos que sopravam da França anunciavam a insatisfação estudantil em relação às condições de ensino. Nos EUA a luta pelos direitos civis saía dos guetos e ganhava o país, que também perdia parte de sua juventude na Guerra do Vietnã. A “Primavera de Praga” levou à invasão da Tchecoslováquia pela União Soviética e esmagou uma juventude que ansiava por mudanças. A ditadura militar no Brasil se fortalecia e já mostrava sua intenção ao decretar os Atos Institucionais que aniquilariam os direitos sociais. Com o mundo em conflito, os Jogos Olímpicos seriam realizados intentando promover a paz e a compreensão entre os povos.

Equipes esperando a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos do México, em 1968 – Foto: Mario De Biasi via Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0

Os países do Leste Europeu entenderam que os Jogos Olímpicos eram uma grande vitrine para demonstrações de supremacia. Esporte era sinônimo de educação, desenvolvimento, saúde, enfim, o programa ideal de um Estado de bem-estar social. Já na terceira edição, pós-Segunda Guerra, a União Soviética passou a dominar o quadro de medalhas, instrumento criado pelos americanos para manifestar sua superioridade olímpica. Não bastasse isso, a participação olímpica era uma moeda de troca nos embates internacionais. A participação na competição olímpica esteve por anos vinculada a invasões, desrespeito aos direitos humanos e distensões regionais. E o cenário daquele final de década mostrava isso.

O México era então governado por um presidente eleito, porém com a força de um ditador, em função do unipartidarismo que vigorava no país. Essa condição lhe permitia gerenciar os Jogos e toda a dinâmica de sua estrutura conforme seu desejo. A insatisfação com essa forma de gerência levou a vários protestos, culminando no massacre da praça de Tlateloco, quando faltavam dez dias para a abertura dos Jogos Olímpicos – manifestantes foram encurralados e fuzilados por forças militares.

Eles tinham ideias, ideais e posicionamento político. A cena antológica dessa condição foi a premiação dos atletas Tommie Smith e John Carlos, primeiro e terceiro colocados nos 200 metros rasos, quando no momento da execução do hino nacional baixaram a cabeça e levantaram o braço com o punho fechado calçando luvas pretas

Durante a cerimônia de premiação, Smith (ao centro) e Carlos protestaram contra a discriminação racial: desceram descalços no pódio e ouviram o hino abaixando a cabeça e levantando o punho com uma luva preta – Foto: Angelo Cozzi via Wikimedia Commons / Domínio público

Mas foram os atletas, uma vez mais, que protagonizaram os momentos que marcaram aquela edição olímpica, isso porque muitos deles, além de serem pessoas altamente habilidosas, eram também frequentadores de universidades e atentos ao que se passava em seus países. Estudantes do leste e do Ocidente foram aos Jogos Olímpicos conscientes da visibilidade do evento e que ali seria o palco não apenas para competições, mas para manifestação de suas insatisfações. Eles tinham ideias, ideais e posicionamento político. A cena antológica dessa condição foi a premiação dos atletas Tommie Smith e John Carlos, primeiro e terceiro colocados nos 200 metros rasos, quando no momento da execução do hino nacional baixaram a cabeça e levantaram o braço com o punho fechado calçando luvas pretas. Aquela cena ainda se afirma como o momento mais marcante dos Jogos Olímpicos do México. O protesto inédito em um pódio olímpico alcançava o planeta e denunciava a segregação racial que marcava a política estadunidense que vitimara muitos dos que buscavam chamar a atenção para a ausência da igualdade anunciada em uma constituição.

A cena marcou também a história olímpica pela punição imposta aos três medalhistas, contradizendo valores e afirmando a indissociabilidade da política e do esporte. Tentou-se apagar a imagem do pódio e também a carreira vitoriosa de três homens que eram mais do que atletas. O COI baniu Smith e Carlos dos Jogos, inviabilizando qualquer possibilidade de participação olímpica posterior, mas aquele gesto os imortalizou.

As punições, porém, não ficaram restritas aos atletas estadunidenses. Peter Norman, o atleta australiano segundo colocado, usou no pódio um broche do Projeto Olímpico para os Diretos Humanos, e seu gesto foi entendido também como protesto. Norman afirmou sua posição favorável aos demais atletas, mesmo depois de pressionado pelo Comitê Olímpico Australiano a declarar que fora coagido a ter aquela atitude. Sua punição, porém, foi mais sutil. Renegado e esquecido das competições esportivas, o medalhista de prata foi desprezado até mesmo durante os Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000. Muitos olímpicos australianos foram celebrados e seus feitos reforçados, menos ele. Sua reabilitação ocorreu apenas em 2012, seis anos após a sua morte.

O ano de 1968 afirmou um momento de embates e reflexões e confirmou que o esporte, como fenômeno sociocultural, não está à margem do que acontece na sociedade e colocou à prova a prática dos ideais estabelecidos por Pierre de Coubertin a respeito da condição apolítica do Movimento Olímpico. E na condição de produção humana ele pode servir a distintos fins, ainda que seus produtos possam causar danos irreparáveis a pessoas que se destacam por uma habilidade fora da média.

Smith, Carlos e Norman representam a condição de sujeitos constituídos por múltiplas identidades que também são atletas. Indicaram a potência de sua visibilidade ao utilizar o lugar da consagração de heróis olímpicos para um fim social e pagaram com a própria a carreira o preço de seus atos. Entretanto, passado meio século, são eles a memória viva dos Jogos Olímpicos do México.

.

.

Leia mais

.

[catlist tags=usp50anosde1968 template=ultimas_publicacoes date=yes numberposts=-1 dateformat=’j/F/Y’ thumbnail=yes thumbnail_size=347,182 thumbnail_class=’list_category_post_ultimas_publicacoes’]

..


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.