Reflexões sobre a linguagem científica na comunidade escolar

Por Sahda Marta Ide, professora aposentada da Faculdade de Educação (FE) da USP

 25/11/2021 - Publicado há 2 anos
Sahda Marta Ide – Foto: Arquivo pessoal

 

 

A necessidade de comunicação para expressar sentimentos e pensamentos surgiu quando o ser humano reconheceu o outro como um ser sensível e, para isto, foi necessário desenvolver a linguagem, tornando a mesma a chave da comunicação humana e o maior instrumento do pensamento. São diferentes e variam de língua para língua, de cultura, de sexo, de profissão, entre outras.

Cada indivíduo vê o referente de uma determinada maneira. É uma estrutura organizada por meio de um sistema de signos linguísticos que podem ser combinados entre si, sendo concretizada pela fala e escrita. A primeira é ato individual e é utilizada de forma coloquial e formal. Coloquial, abrange a comunicação linguística em toda sua totalidade, vindo sempre acompanhada de voz, às vezes de mímicas, fisionomias, entre outras. A formal, em situações cultas, com cuidado no vocabulário e obediência às regras gramaticais.

Na linguagem há uma norma instalada, ou seja, há um sistema linguístico, um sistema cultural e um sistema social, que são interdependentes e têm uma relação dialética conservação mudança. O linguístico muda o cultural e social e vice-versa e ambos modificam o linguístico. Logo, há fatores culturais, contextuais, profissionais e regionais que interferem o tempo todo na linguagem, quer oral, quer escrita.

A linguagem verbal tem função utilitária e científica. A primeira é uma linguagem como instrumento de mensagem e pode ser muito diversificada, como os textos jornalísticos, religiosos, comerciais, empresariais, informáticos, virtuais (como a linguagem das redes sociais) entre outros. A científica se caracteriza pelo rigoroso emprego das denotações, ou seja, uso exato do termo, ordem direta das palavras nas orações, nos períodos, portanto uma linguagem escrita, precisa, objetiva, concisa. Para compreendê-la é necessário um conhecimento científico, não só ao que se refere ao vocabulário, mas também ao conhecimento dos conceitos científicos, estando consciente que o seu uso pode alterar as atitudes e métodos. Para compreendê-la, necessita-se da ajuda dos especialistas, pois o seu significado se restringe somente como se define na ciência.

A linguagem científica, entretanto, é pouco explorada pelos professores de educação básica e especial, pois os obriga a ter conhecimentos científicos não contemplados na sua formação profissional, desconsiderando que ela acompanha todo o processo de ensino-aprendizagem e interfere em ambos os processos. Para compreendê-la, é importante que tenham conhecimentos elementares e gerais da ciência Linguística, uma vez que nela se analisam as mudanças de sentido que ocorrem na língua (sistema) devido a fatores como o tempo, espaço geográfico, bem como na relação dos signos linguísticos e de seus diferentes significados, quando utilizados em diferentes contextos, não só ao que se refere ao vocabulário, mas também — e principalmente — na compreensão da linguagem científica, uma vez que ela tem estrutura própria, regras, exceções, que provocam dificuldades na compreensão de sua terminologia.

O signo linguístico se compõe de duas faces básicas: significante e significado. O primeiro é suporte de conceito e o segundo é o conceito, tendo uma relação de dependência, ou seja, um significante só o é em relação a um significado e vice-versa, quando inserido num contexto linguístico. Caso mude o contexto linguístico, o significado deste significante pode mudar. São os casos dos signos linguísticos: transtorno, dificuldade, distúrbios, problemas (significantes), entre outros, os quais apresentam diferença de conceito (significado) no seu uso na linguagem do cotidiano e na linguagem científica. Por exemplo:
• João tem muitos “transtornos”, “problemas”, “distúrbios” na sua vida familiar.
• João tem muitos “transtornos”, “distúrbios”, “problemas” na sua vida escolar.

No primeiro exemplo, os signos linguísticos são usados na linguagem do cotidiano. Já no segundo, pertencem à linguagem científica, uma vez que podem estar relacionados a problemas de aprendizagem, quer seja devido a problemas orgânico-sociais, quer seja pelo mau ensino-aprendizagem.

Nos contextos do cotidiano, esses signos acima não causam problemas e podem ter muitos significados quando inseridos nos contextos jornalísticos, religiosos, comerciais, empresariais, dentre outros. Não provocam nenhuma interpretação inadequada que cause prejuízos de comunicações graves, pois estão mais relacionados aos significados da linguagem do cotidiano. São abrangentes, e a sociedade os utiliza com diversas variações de significados. São partilhados por uma grande parte do grupo social.

Entretanto, ao serem utilizados no contexto escolar pertencem à linguagem científica e causam danos, na maioria das vezes irreversíveis, ao estudante, uma vez que não estão relacionados somente aos problemas neurológicos, mas também como consequência deles, ou, ainda, somente relacionados a fatores ambientais, sociais, econômicos, familiares, problemas do ensino, que levam, muitas vezes, os professores a considerarem essas crianças como problemáticas, mal-educadas e imaturas.

Pode-se concluir que ensinar “mal” é uma problemática que contorna a ênfase do desconhecimento do professor sobre a diferença entre o significado da linguagem científica e do cotidiano dos signos linguísticos: transtornos, distúrbios, dificuldades, problemas, atrasos, entre outros. É necessário que o docente seja bem capacitado, que saiba ler e interpretar os textos científicos adequadamente, bem como escrever corretamente os problemas de aprendizagem com explicações mais contextualizadas e sem “diagnosticar”.

Para o professor conseguir entender bem os diagnósticos efetuados pelas equipes multidisciplinares, é necessário que ele tenha noções elementares de linguística, o que o fará distinguir entre os signos linguísticos — como transtorno, distúrbios, dificuldades, problemas, atrasos, entre outros — quando pertencem à linguagem científica e quando pertencem à linguagem do cotidiano e, assim, entender e questionar suas dúvidas, recebendo ajuda e esclarecimentos necessários para o ensino adequado às dificuldades apresentadas pelos estudantes.

O docente é agente ativo e facilitador da aprendizagem. Suas ideias e conhecimentos devem ser levados em conta, mesmo aqueles adquiridos ao longo de sua vida, mesmo antes de se formar. Entretanto, na maioria das vezes, não há ênfase no espírito crítico e de pesquisa na sua formação. Não há lugar a questionamentos mais profundos de suas atitudes profissionais, em sua preparação acadêmica, que, muitas vezes, é deficitária. A sociedade e o Estado brasileiros lhes diminuem os estímulos e as possibilidades de executar sua tarefa de forma digna. A situação financeira dos professores é caótica (salários baixos), o que os impede de exercer sua profissão de forma pensante e crítica em relação ao ensino-aprendizagem de seus alunos. Estão desamparados e, muitas vezes, em desarmonia com as famílias dos alunos.

Professor e família devem ser parceiros e estar juntos, buscando subsídios para que o estudante se sinta acolhido. Porém, na maioria das vezes, as famílias dessas crianças e adolescentes pertencem a classes socioeconômicas desfavorecidas. Há fatores graves que obrigam as famílias a viver em condições precárias, que as impossibilitam de ter uma participação efetiva e afetiva na educação de seus filhos. Esta situação provoca prejuízos intelectuais, especialmente quando ocorrem na primeira infância, ocasionados pela miséria material, doença mental ou física em um ou nos dois pais, baixo nível educacional dos pais, exposição a maus tratos de natureza física e moral, institucionalização em orfanatos mal administrados, entre outros, provocando péssimo autoconceito, desmotivação, fracasso e evasão.

É crescente o número de alunos com dificuldade de aprendizagem escolar, muitos deles se desinteressam, aliados pela desmotivação, e desenvolvem baixa autoestima, evadem-se ou são reprovados e abandonam a escola por demonstrarem dificuldades em adquirir o conhecimento de determinadas matérias, principalmente as relacionadas à leitura e escrita.

Este contexto dramático da educação no Brasil é histórico. Sempre foi marcado por fatores econômicos, políticos, sociais e culturais que refletem uma perspectiva de segregação e de privilégios desde o período da colonização brasileira, o que torna o ensino seletivo, excludente, acarretando problemas graves e que ainda persistem na sociedade atual.

O Jornal Nacional anunciou, na edição de 15 de julho de 2020: “O abandono escolar é uma realidade bem conhecida de milhões de brasileiros e a pesquisa do IBGE registrou, pela primeira vez em números, que dos 50 milhões de pessoas com idades entre 14 e 29 anos, dez milhões, ou seja, 20% delas, não tinham terminado alguma das etapas da educação brasileira […] a grande maioria é de negros e pardos. O principal motivo: necessidade de trabalhar, falta de interesse. Entre as mulheres, a gravidez e as tarefas domésticas”.

Dia 14 de novembro é o Dia Nacional de Alfabetização e, segundo matéria publicada no Jornal USP, “as escolas brasileiras ainda formam analfabetos funcionais. […] Com pouco a comemorar, diante dos 29% da população que ainda possuem dificuldades para interpretar e aplicar textos e realizar operações matemáticas simples no cotidiano. O dado é do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), divulgado em 2018, que classifica como analfabetos funcionais os brasileiros que encontram barreiras em suas vidas como cidadãos, incluindo o mercado de trabalho”.

Pode-se incluir, também, que os analfabetos funcionais o são por terem sido mal alfabetizados, ou seja, não compreendem o que leem e não conseguem falar e escrever com clareza e significado seus pensamentos e ações. Portanto, não têm comunicação social.

O simples conhecimento linguístico de diferenciar o significante do significado nos contextos escolares entre a linguagem científica do cotidiano, quando se referem a transtornos, distúrbios, dificuldades, problemas, atrasos, entre outros, evitará graves problemas no ensino-aprendizagem das crianças e adolescentes brasileiros. Caso contrário, ocasionará erros não só na interpretação, que leva a posturas profissionais inadequadas no ensino, inclusive “patologizando” sem necessidade. Na maioria das vezes, estas dificuldades são reversíveis, quando há um ensino adequado e diferenciado necessário a cada caso. O planejamento conjunto entre professores e investigadores de estratégias educacionais são ferramentas fundamentais, que podem ser usadas na sala de aula para promover a aprendizagem. Devem ser enfatizadas por aqueles que se preocupam com a necessidade de ligar teoria e prática na formação dos professores, quer no ensino fundamental, quer no universitário.

Quem concretiza a prática pedagógica é o professor. Seu papel é decisivo no processo educativo, pois o ensino, em última instância, depende dele, uma vez que é o mediador entre o aluno e a busca do conhecimento, porém não se limita somente à matéria que vai ensinar, mas também às necessidades dos alunos e à situação em que se desenvolve a aprendizagem. Um professor bem esclarecido linguisticamente saberá diferenciar a linguagem científica da cotidiana e não utilizar a linguagem científica inadequadamente, e também terá condições de informar e orientar a família do educando, quando este apresentar algum “problema” na aprendizagem.

Linguagem é poder, uma vez que todo pensamento e ação se dão por meio dela, quer seja na educação, no campo social, no econômico, no cultural e, principalmente, nas políticas públicas de educação que, atualmente, estão sendo regidas por um ministro da Educação que diz que “pessoas com deficiências atrapalham”. Esta discriminação ocorre, principalmente, nas crianças de classes sociais desfavorecidas, de extrema pobreza, que apresentam “dificuldades de aprendizagem”, pela falta de estimulação e abandono social e familiar.

Para terminar, um aviso para o atual ministro da Educação brasileira: todos somos potencialmente deficientes. A qualquer momento podemos ter alguma deficiência física (surdez, cegueira) ou mental, ocasionada por um acidente, um AVC e/ou por doenças degenerativas.

Este aviso também serve para o ministro da Saúde, médico, que fez o juramento de Hipócrates: “Respeitarei a autonomia e a dignidade do meu doente e guardarei o máximo respeito pela vida humana”.


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