Por um futuro construído com generosidade

Por José Roberto Castilho Piqueira, professor da Escola Politécnica da USP

 05/01/2021 - Publicado há 3 anos
José Roberto Piqueira – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
A passagem de ano, embora seja uma simples convenção de calendário, traz sempre reflexões sobre o ocorrido no ano anterior e as esperanças para o ano seguinte.

Nesse sentido, a passagem de 2020 para 2021 é particularmente rica, com 2020 marcado pela pandemia e pela necessidade de melhoria do conhecimento da ciência pela sociedade, e um 2021 com esperança de vacinas e de alguma normalidade.

Em meio a tudo isso, ontem recebi a notícia do falecimento do querido padre Ticão, no mesmo dia da missa de um mês pelo colega e amigo André Hirakawa. Evidentemente, essa combinação de fatos só poderia resultar em tristeza.

Entretanto, minha tristeza individual é irrelevante diante da invisível tristeza planetária, pois essas duas perdas representam uma diminuição considerável na generosidade coletiva.

Conheci o padre Ticão nas reuniões que realizamos sobre a possível implantação de cursos de Engenharia na USP Leste, sonho de toda a comunidade local e possível solução para atenuar a necessidade de geração de empregos na região.

Na verdade, a própria existência da USP Leste se deve à persistência do padre Ticão, que fez o que sempre ensinou a comunidade da Zona Leste: liderou um processo da própria comunidade que não parou enquanto o Estado e os órgãos da USP não decidiam pelo novo campus.

Depois, continuou: a Zona Leste queria que suas meninas e meninos pudessem ser engenheiras e engenheiros – como manifestaram, com brilho nos olhos, em várias reuniões na USP Leste e no salão paroquial da Igreja de S. Francisco, as alunas e alunos e pais de escolas públicas na região.

O professor André Hirakawa já estava envolvido nessa empreitada, muito antes de mim, deixando de lado ganhos com projetos pessoais e acreditando na possibilidade de viabilizar mais oportunidades para os jovens.

Padre Ticão era solidário e amigo dos menos favorecidos com a mesma firmeza que enfrentava os mecanismos de poder, em busca da melhoria das condições de vida de seus semelhantes. Além disso, sabia que a USP não é apenas de todos, mas também para todos. André era o homem bem humorado e sorridente, sempre pronto para colocar seu conhecimento técnico para ajudar os futuros estudantes.

Animados por um ex-secretário de transportes – o engenheiro Plínio Assmann – e pelo padre Ticão, liderados pelo André e com a coordenação do professor Mauro Zilbovicius de um grupo de docentes da Poli, contando com a participação do professor Waldir Augusti, braço direito do padre Ticão em todas as suas iniciativas, elaboramos um projeto sólido para a Poli Leste, que foi aberta e fechada sem nunca ter operado.

O projeto visava a criação de um centro de formação de pessoas na área tecnológica – uma ETEC, duas habilitações em Engenharia: um curso de engenharia de computação, associado ao curso de análise de sistemas já existente na USP Leste e um curso de engenharia de cidades vistas como objetos complexos – do saneamento, à mobilidade urbana e à inteligência da gestão.

Além disso, previu-se a formação continuada para profissionais já no mercado que precisam aprender coisas novas, além da incubação de possíveis produtos resultantes de trabalhos dos alunos da USP e dos outros cursos tecnológicos já existentes na região. O projeto visava o enraizamento da Poli na Zona Leste, e não um curso a mais, apenas em outro local da cidade.

Apesar do baixo custo envolvido na empreitada e da generosidade de todos envolvidos, não houve progresso e nunca mais se falou nisso.

Mas o padre Ticão não parava. Ajudado por uma pequena verba de projetos da Poli montou um curso pré-vestibular gratuito para a população carente da região. Os professores Waldir e André trabalharam, junto com o padre Ticão, para arrumar professores voluntários, material didático e ajuda de alimentação e transporte para os alunos.

Francamente, depois que deixei os cargos de gestão, não acompanhei a continuidade da iniciativa que, aparentemente, durou por três anos. Os jovens que o frequentaram tiveram a oportunidade de ingressar em universidades e melhorar suas perspectivas de vida.

As ideias interrompidas não morrem e a necessidade de melhorar a empregabilidade e as condições econômicas da cidade nunca foi tão premente.

Como o passado não pode ser mudado, mas o futuro pode ser construído, que a generosidade do padre Ticão e do André siga viva nas ações da nossa comunidade e contagie o País, tão imerso em questões políticas de pouco valor humano.

 


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