O desafio de Eduardo Lourenço à cultura brasileira

Por Carlota Boto, professora da Faculdade de Educação da USP, e Maria Manuela Cruzeiro, pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

 03/02/2021 - Publicado há 3 anos
Carlota Boto – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

 

Eduardo Lourenço de Faria (1923-2020), mais conhecido como Eduardo Lourenço, foi um importante filósofo, ensaísta, crítico literário e intelectual público português que veio a falecer no final do ano passado. Nascido em São Pedro do Rico Seco, uma aldeia na região da Beira Interior, em Portugal, cursou Ciências Histórico-Filosóficas na Universidade de Coimbra. Lá também iniciou sua trajetória como professor universitário. Foi primeiramente assistente da Faculdade de Letras, colaborando com o professor Joaquim de Carvalho. Nesse início de sua carreira, entre o final dos anos quarenta e início dos anos cinquenta, publica seu primeiro livro, intitulado Heterodoxia, o qual consistia em uma versão de sua tese de licenciatura. Depois foi lecionar nas universidades de Hamburgo, Heidelberg, Montpellier e da Bahia, exercendo nessas instituições o papel de professor de Cultura Portuguesa. Desde os anos sessenta, atuou como professor na França, lecionando em Grenoble e depois em Nice, onde ficou até o final dos anos oitenta. Seu livro mais conhecido – O labirinto da saudade: psicanálise mítica do povo português – foi publicado no final dos anos setenta, alguns anos depois da Revolução dos Cravos. O conjunto de sua obra não tem tido a circulação que mereceria no Brasil, embora alguns de seus títulos tenham sido publicados em nosso país pela Companhia das Letras.

É um dos autores contemporâneos que melhor pensou o tema da identidade cultural portuguesa. Escreveu sobre Portugal com uma fina escrita, que tem uma fluência e um encadeamento muito particular, o que fez com que Eduardo Lourenço fosse considerado um dos escritores que melhor escrevia em língua portuguesa. Tal reputação, construída a partir do reconhecimento público de sua extensa e importante obra, lhe valeu o recebimento do Prêmio Camões (1996), do Prêmio Pessoa (2011), a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura em Portugal (2008) e do Prêmio Vergílio Ferreira (2001), entre outros. Recebeu o doutoramento honoris causa pela Universidade Nova de Lisboa, pela Universidade de Bolonha e pela Universidade de Coimbra. É autor, dentre muitos outros, de Mitologia da saudade, publicado pela Companhia das Letras; e do livro A nau de Ícaro, publicado em Lisboa, pela Editora Gradiva.

O que Eduardo Lourenço tem a dizer para o Brasil? Muito. Ao trabalhar Portugal como um povo que teria criado uma mitológica vocação universalista, Eduardo Lourenço reflete sobre os desafios do período de mundialização, sem deixar de atentar para as relações entre a antiga metrópole portuguesa e o Brasil. Para o escritor, o modo como os portugueses nos veem faz do Brasil “um outro, mesmo quando o pensamos, para reforço da nossa identidade onírica, como o outro sublimado de nós mesmos”. Eduardo Lourenço – sobre as relações entre Portugal e Brasil – dirá que “o conceito de descoberta não tem o mesmo sujeito para quem do seu ponto de vista, descobriu e para quem do ponto de vista oposto (mesmo só na consciência futura do encontro), foi descoberto”.

Eduardo Lourenço certamente convoca a cultura brasileira a repensar a si mesma quando diz que o discurso cultural do Brasil rasura a raiz lusitana de onde, em parte, procede. Lourenço destaca que os brasileiros reconhecem hoje outras heranças, mas não a portuguesa, como suas matrizes legítimas. E que, em virtude disso, há um descompasso nas relações Portugal e Brasil. O discurso português sobre o Brasil foi, nas palavras de Lourenço, “pura alucinação nossa, que o Brasil – pelo menos desde há um século – nem ouve nem entende”. O diálogo entre Portugal e Brasil teria se dado – na visão do escritor – como um diálogo de surdos no qual decididamente Portugal não se apresenta como um problema para os brasileiros. É como se o Brasil reconhecesse como legítima sua herança indígena e sua herança africana, mas deixasse de reconhecer sua herança portuguesa. Isso geraria uma incompreensão mútua das duas culturas. Para Eduardo Lourenço, o Brasil pretende sempre abrasileirar o seu passado, afastando-se da origem lusitana.

Tal interpretação data do final do século passado. Desde então a imigração brasileira em Portugal foi intensificada de maneira exponencial. Desde então, os laços luso-brasileiros de comunidades científicas no ambiente acadêmico se estreitaram sobremaneira. Resta saber se aquela imagem de Brasil ainda persiste como válida e atual. Seja como for, Eduardo Lourenço interpela o discurso sobre a cultura brasileira; e nessa condição merece ser lido. E porque somos um pouco também filhos da cultura portuguesa, a leitura de sua obra nos parece um convite à compreensão de nós mesmos.

Maria Manuela Cruzeiro – investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – escreve uma sensível carta de despedida, ela que é uma estudiosa da obra do escritor. Essa carta, que reproduzo a seguir, foi publicada originalmente no jornal português O público e revela para o leitor brasileiro hoje um pouco do muito que Eduardo Lourenço representa para a compreensão de um “Portugal como destino”.

Carta a Eduardo Lourenço na sua partida para férias

Maria Manuela Cruzeiro – Foto: esectv / Youtube

 

Caro professor, querido amigo,

Aí, no seu São Pedro de Rio Seco, sentiu porventura o rumor das vozes. Muitas e variadas em busca do que melhor traduza o raro privilégio da sua presença nas nossas vidas. Quase todas trazendo memórias pessoais mais ou menos íntimas, mais ou menos curiosas, de momentos que partilharam consigo, e só por isso os torna depositários de um tesouro demasiado precioso para ser ignorado! Bem sei que é o mais natural mas, por mim, sinto que esse céu de palavras para onde o querem levar se assemelha antes a um difuso nevoeiro que a mais simples das suas citações dissipa como o primeiro raio de sol da manhã.

Cito-o de cor: “Nós escrevemos como se fossemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós nunca escreveríamos nada de grandioso”. Como se… claro… como se… E não foi Pessoa, o seu alter-ego, ou um seu secreto heterónimo, que lhe ensinou a verdade do fingimento? E que o escudou para enfrentar os “dragões de todas as evidências que enganam”? Então essa “evidência” da sua morte que tomou de assalto os círculos midiáticos, devidamente assessorados pelos habituais comentadores “especializados” (que nem por isso se apercebiam do escândalo ou do prodígio que noticiavam), só podia ser um engano… ou uma ficção… quem sabe?

Como podia morrer alguém que, durante tantos e tantos anos, habitou com tão intenso prazer, lucidez e generosidade, a nossa paisagem cultural e o núcleo mais íntimo dos nossos afectos? Alguém cuja voz de corifeu, aedo ou jogral fez de tal forma corpo com o nosso tempo vivido que, mais do que memória ou inscrição, foi dele desejo e pulsão de futuro? Alguém a quem amorosamente confiámos o diário de bordo desta nossa comum navegação entre imaginação e mundo? E que primeiro nos dava as boas e más notícias: das tempestades como dos dias de bonança reais ou sonhados?

E não era só o assunto: da filosofia à política, da música, da pintura e da arte em geral à história, do cinema à literatura (sua paixão maior), dos momentos e protagonistas principais da nossa vida cultural, política ou social, aos aspectos mais fúteis ou efémeros da nossa pequena comédia mundana, segundo a sua máxima de que um ensaísta é o que pensa tudo o que deve ser pensado, e mesmo o que o não merece…

Era também o lugar de onde essa fala nos chegava: das mais humildes e modestas instituições de cultura e de ensino deste país, às mais prestigiadas universidades nacionais e internacionais, das páginas do mais obscuro jornal de província, às mais conhecidas publicações literárias e culturais, das pequenas rádios locais aos principais canais de televisão… dos inúmeros congressos, colóquios, encontros, da imensidão de livros que apresentou aos prefácios que escreveu… onde a sua presença era sempre promessa de regresso ao fulgor das perguntas iniciais.

Sedução… é a palavra. Primeiro por si, como pessoa: esse misto de camponês e de príncipe… essa atenção aos outros e distracção de si mesmo… esse sorriso tão jovial de quem faz de cada encontro uma festa… essa alma de eterno viajante que chega como se sempre estivesse, e parte como se ficasse. Depois, pelo poder magnético dessa voz. Escrita ou falada, é a um tempo inquieta e serena, fluida e terrivelmente precisa, “torrencial, sem tonitruância” (M. Velho da Costa) e suave como um regato ameno… E contudo, sempre capaz de suspender todas as evidências consagradas e nos levar a ver as coisas como se pela primeira vez as víssemos.

Consigo aprendi que o pensamento pode ser uma imensa alegria. Maior ainda quando partilhada e vivida em tempo real. Vê-lo e ouvi-lo, onde e sobre o que quer que fosse, era isso: a imensa alegria de o ver pensar. Com temor e delicadeza… tateando o chão e olhando em volta… perscrutando sinais… ensaiando o voo… criando, experimentando, hesitando, aceitando ser escolhido em vez de escolher e por isso mesmo chegando sempre demasiado longe…

Por paradoxal que pareça, não é fácil ouvi-lo e muito menos lê-lo, professor! Sê-lo-á para quem o senhor é o brilho encantatório da sua escrita, ou o poder das suas cintilações de pensamento… tantas vezes transformadas em clichés e esteriótipos sem vida.

Esses são os traços que o consagram e lhe conferem uma unanimidade coroada com o fulgor da canonização, sempre ameaçada pelos fantasmas do “comentarismo ruminante e estéril”, como o senhor sabe melhor que ninguém. Mas depois há a vertigem estonteante dessa fala polifónica que tanto o faz voar na asa do tempo, como mergulhar fundo na imensidão da biblioteca viva que o senhor é.

E há esse estilo barroco, metafórico, cheio de referências implícitas ou explícitas, ironias, analogias, bifurcações, labirintos, onde os mais incautos acabam por sucumbir de cansaço e encantamento, como os antigos navegantes ao canto das sereias. E se recolhem numa veneração silenciosa, que é tantas vezes a outra face da “desleitura” que afecta muitas das suas propostas. Quase se resignou com essas leituras preguiçosas e apressadas, ou mesmo perversas, às quais reagia entre o irónico e o melancólico.

Talvez por isso Saramago tenha sido mais claro e veemente: “E veio Eduardo Lourenço e explicou-nos quem somos e porque o somos. Abriu-nos os olhos, mas a luz era demasiado forte para toupeiras habituadas à escuridão. Por isso tornámos a fechá-los”.

Voltando à questão da eternidade, motivo primeiro desta minha carta. Quem melhor do que o senhor se aproximou dela, a ponto de a ter encenado (fingido) nesse estranho e inqualificável objecto que é o filme Labirinto da saudade, de Miguel Gonçalves Mendes? Protagonista, narrador, actor de si mesmo, o senhor passeia por aquele espaço fantasmático no seu passo miudindo, no seu sorriso terno e ausente, por vezes divertido, de quem não entra afinal naquela história, de quem à boa maneira do seu mestre, se desdobra sempre num outro porque, como escreveu algures, “nós só existimos no espelho dos outros”.

Procurar-se entre os outros, entre nós, a sua “lusa tribo” (Lídia Jorge) é afinal a razão última da sua demanda no filme como na vida. Por isso só faria sentido que essa sua entrada na ante-câmara da eternidade fosse testemunhada e acompanhada pelos amigos que, na hora crepuscular, o não deixaram sozinho face à esfinge e lhe mostraram a sua verdadeira face no espelho da nossa orfandade e gratidão.

Foi assim que o vi partir para férias… sem outra bagagem que não a companhia dos seus irmãos poetas, com destino à verdadeira eternidade que é a infância. Esse tempo sem tempo, esse “grande círculo do sempre”, cujo brilho de puro cristal nunca deixou que os desastres da vida embaciassem. O senhor sempre soube que nunca saiu daquele planalto árido e varrido de vento, como ele nunca saiu de si. Habitou as margens da sua imaginação como todas as realidades da vida não habitaram o centro. Por isso a ausência que hoje nos fere, é o mais real e verdadeiro de todos os seus regressos. Na contra-luz dos milhares de páginas que escreveu desenha-se a imagem de alguém que sempre procurou na escrita “esse gesto de redenção que nos ajuda a atravessar a noite mais opaca até à reinvenção da infância imortal de todos os homens”. Disse-o, dizendo-se, de Antero, aquele que melhor que ninguém mostrou que “o mar da ficção é o único onde a salgada e perecível vida se volve em realidade”. Hoje só os poetas deviam falar!…

Só… incessante, um som de flauta chora… (Camilo Pessanha)

Sua,

Maria Manuela Cruzeiro

 


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