Especialistas analisam o humanismo e a compaixão de José Saramago

Escritor português é tema de evento promovido pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP nesta semana

 15/12/2020 - Publicado há 3 anos
Por
O escritor português José Saramago (1922-2010) – Foto: Reprodução

“José Saramago olhava o mundo, lia e escrevia sendo a pessoa que era: um pensador humanista a quem nada lhe resultava alheio. Não foi mudando com o tempo, embora as circunstâncias da sua vida tenham mudado. Foi sempre um ser humano que escrevia olhando o mundo com a mesma curiosidade, a mesma compaixão e energia.”

Quem oferece essa elegante descrição do escritor português José Saramago (1922-2010) – exclusiva para o Jornal da USP, por e-mail – é Pilar del Río, escritora, jornalista e tradutora espanhola que foi companheira de Saramago por 22 anos e hoje preside a Fundação José Saramago, de Lisboa, em Portugal.

Pilar é uma das convidadas do seminário Celebrando José Saramago, homenagem promovida pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP por ocasião dos dez anos da morte do escritor, único de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura. O evento acontece on-line nesta quinta e sexta-feira, dias 17 e 18 de dezembro, e reunirá especialistas brasileiros e portugueses que analisarão a obra do autor de clássicos contemporâneos como Memorial do Convento (1982), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) e Ensaio sobre a Cegueira (1995).

A escritora Pilar del Río e Saramago: companheiros por 22 anos – Foto: Reprodução

Jaime Bertoluci, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP e pesquisador do IEA, é o responsável pela organização da homenagem. Desde 2019, Bertoluci elabora um projeto multidisciplinar no instituto que investiga a compaixão pelo sofrimento imposto aos animais por seres humanos na obra de Saramago. “A ideia para essa pesquisa surgiu do encontro entre meu amor pelos animais – sou zoólogo – e minha admiração pela escrita e pelo pensamento de Saramago”, comenta o professor, que apresentará uma síntese de seu trabalho nesta quinta-feira, dia 17.

A escalada de Bertoluci pela prosa de ficção de Saramago busca entender as causas da compaixão do autor pelo sofrimento dos animais a partir dos contextos filosófico, histórico, social e religioso de cada obra. “Tento demonstrar que a compaixão independe de qualquer tipo de religiosidade, posto que o autor declarava-se abertamente um ateu, e que, pelo contrário, a ausência de compaixão, a indiferença pelo sofrimento alheio a até mesmo a crueldade podem, paradoxalmente, estar relacionadas a algum tipo de crença no sobrenatural”, explica o docente.

O professor da USP Jaime Bertoluci, coordenador do evento – Foto: arquivo pessoal

Exemplos desse tratamento dispensado aos animais foram encontrados por Bertoluci em várias obras de Saramago. Como em Memorial do Convento, romance em que centenas de bois de carga transportam uma pedra colossal destinada ao pórtico da igreja do convento de Mafra e touros são massacrados em uma arena para diversão dos presentes. Em História do Cerco de Lisboa (1989), o protagonista testemunha o sofrimento de um cão abandonado e hesita em ajudá-lo. Já em A Viagem do Elefante (2008), o próprio transporte do personagem-título, da Península Ibérica até a Áustria, ilustra a abordagem do escritor.

“Não se trata de uma atitude panfletária”, comenta Bertoluci. “O autor se recusa a proclamar em altos brados suas razões, confiando ao leitor a tarefa de perceber por si mesmo a compaixão embutida em sua prosa.”

As reflexões de Levantado do chão e de A caverna

A homenagem do IEA acontece também quando se comemoram os 40 anos de publicação de Levantado do chão (1980), terceiro romance de Saramago, e os 20 anos de A Caverna (2000), primeiro romance publicado após o recebimento do Prêmio Nobel. Duas obras que, se não recebem os mesmos rasgos elogiosos de outros trabalhos, passam longe da irrelevância.

O livro Levantado do Chão: a vida de camponeses humilhados e as contradições dos homens poderosos – Foto: Reprodução

“Em Levantado do Chão ele contou, a partir de um ponto de vista da contemplação e com o seu estilo literário tão pessoal, a vida de três gerações de camponeses sem-terra, humilhados e ofendidos pelo latifúndio”, comenta ao Jornal da USP a escritora Pilar del Río, que fará a abertura do evento promovido pelo IEA. “E também contou sobre a esperança que lhes invadiu naquele dia ‘levantado e principal’ da Revolução dos Cravos.”

Situando sua ação na região do Alentejo, Levantado do Chão cobre, em 34 capítulos, um período de aproximadamente cem anos, a partir do século 19 até a década de 1970, na história da família Mau-Tempo. “O romance aborda as contradições dos homens poderosos, representados por tipos avarentos de terras e posses – ou latifundiários – e sujeitos que encarnam os valores e dogmas da Igreja Católica”, explica o professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Jean Pierre Chauvin.

A Caverna reelabora a alegoria da caverna de Platão no contexto do capitalismo contemporâneo, desnudando as impossibilidades da continuação do modo de vida tradicional diante dos ataques econômicos. Para Chauvin, a obra possui pressupostos similares aos de Levantado do Chão e, mesmo situadas em momentos distintos da trajetória de Saramago, pontos de contato entre as duas podem ser sugeridos.

O livro A Caverna: os ataques do poder econômico ao modo de vida tradicional – Foto: Reprodução

“Ambos os romances abordam conflitos de interesse cultural e econômico entre as diferentes classes sociais”, explica. “Em Levantado do Chão, as pessoas mais vulneráveis cometem a ‘ousadia’ de protestar frente às péssimas condições de trabalho, insurgindo-se contra os detentores das terras e modos de produção. A palavra-chave poderia ser ‘exploração’. As persistentes lutas entre latifundiários e camponeses são mediadas pela Igreja – que, no romance, pende para o lado dos donos da terra.”

Os conflitos sociais também conformam a ação de A Caverna, de acordo com Chauvin, apesar de os antagonismos, aqui, serem retratados de outro modo. “Uma família de oleiros, externa à caverna, resiste ao avanço acelerado das tecnologias. As figuras de barro que criam estão vinculadas ao tempo mais lento e ritualístico da produção artesanal. Esse modo de produzir obras pressupõe o convívio do homem com a matéria-prima e se contrapõe à produção seriada e ao consumo voraz de mercadorias, no interior da caverna. No cerne de ambos os romances residem as disputas do homem pela terra e a contraposição a modos de produção e controle, que desconsideram outros modos de conceber o mundo, relacionar-se socialmente e trabalhar”, reflete o professor.

Segundo Pilar, com A Caverna, Saramago dirige seu olhar aos marginalizados pelo novo sistema econômico, aos anônimos excluídos pelos novos métodos de produção. “De certa maneira, esse livro posterior ao Nobel termina também com uma esperança”, sugere. “Haverá quem não aceite as regras de comércio e decida aprofundar no desconhecido. Esse é o final real de A Caverna, embora o livro termine sarcasticamente com um anúncio publicitário sobre o uso do nosso patrimônio: ‘Brevemente, abertura ao público da caverna de Platão, atração exclusiva, única no mundo, compre já a sua entrada’.”

Contos e crônicas

Chauvin também tomará parte na homenagem ao escritor, com uma exposição sobre o cronista Saramago, faceta menos conhecida que a de romancista – vale recordar que Saramago também produziu poemas, crônicas, ensaios e peças de teatro, além de ter trabalhado como tradutor, crítico literário e editorialista. O interesse da apresentação de Chauvin será concentrado em três livros: A Bagagem do Viajante, de 1973, Folhas Políticas, que reúne crônicas escritas entre 1976 e 1998, e O Caderno, com textos de 2008 e 2009.

O poeta e professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP Fernando Paixão – Foto: Maira Mesquita

“Pareceu-me relevante abordar essa faceta menos estudada do escritor por três razões”, explica. “Primeiramente, porque estamos acostumados a pressupor a crônica como gênero ‘menor’, comparando-a, a meu ver equivocadamente, com o romance. Em segundo lugar, porque José Saramago era um grande leitor de seu tempo e habilidoso cronista. E, finalmente, porque a crônica legada por ele, sendo uma forma literária flexível, admite discussões sobre vários temas e resulta em produtiva análise da linguagem utilizada pelo escritor.”

Enquanto Chauvin vai explorar as crônicas de Saramago, Fernando Paixão, poeta e professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, comentará na homenagem os contos produzidos pelo autor. “Saramago tem plena consciência formal da escrita e ele se adapta às limitações naturais do conto”, comenta Paixão.

O tamanho do formato, a brevidade da escrita, a redução do grupo de personagens e a necessidade de uma ação mais sintética em comparação ao romance são os elementos que Paixão vê contornados por Saramago nesses trabalhos. “Ele tinha muita consciência textual e se adaptou bem ao gênero do conto, que exige esse comedimento”, aponta o professor.

O homem simples no centro

Quando questionado sobre o legado de Saramago para a literatura mundial, Chauvin observa que Saramago era um profundo conhecedor da história de Portugal e que não era unívoco nem resignado com o rumo das coisas. “Respaldado pelos adeptos da nova história, da micro-história, da história das mentalidades e da história dos conceitos, ele coloca o homem ‘simples’ no centro dos acontecimentos, como protagonista da História, com H maiúsculo.”

Com esse protagonismo das pessoas comuns, continua o docente, Saramago tornou-se um especialista em destronar reis e rainhas, criticar a omissão dos políticos, denunciar os abusos do latifúndio e desdenhar das promessas do livre mercado. “A obra de José Saramago é uma amostra eloquente de como a literatura oferece fantasias verossímeis e provê o leitor com ferramentas que nos protegem contra os negacionismos vigentes, não só em nosso país, como se sabe.”

Diante da mesma questão, Pilar cita os “livros esplêndidos” de Saramago, que levam o leitor para o passado e o presente, em um tempo que se confunde na busca pelo material do qual somos feitos. “A dúvida, a responsabilidade, a meditação sobre o erro, o uso do fator Deus, a morte, a ética, a responsabilidade, a finitude e os desejos são a matéria da obra literária de José Saramago”, poetiza Pilar. “O seu estilo literário, belo e poderoso, penetra nos leitores e na consciência do nosso tempo.”

 

O evento Celebrando José Saramago acontece nesta quinta e sexta-feira, dias 17 (das 14h às 17h30) e 18 (das 9h às 12h15) de dezembro, com transmissão ao vivo pelo site do IEA. A participação é gratuita. A programação completa do evento está disponível neste link. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 3091-1686.

 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.