Da Vinci e a busca do conhecimento

Elza Ajzenberg é professora titular da ECA-USP e coordenadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes da mesma faculdade

 03/07/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 04/07/2019 as 19:05

Elza Maria Ajzenberg – Foto: Divulgação / ALESP

Cientista, artista, mestre do Renascimento, Leonardo da Vinci (Anchiano, 15 de abril de 1452 – Amboise, 2 de maio de 1519) abriu horizontes do conhecimento. Pesquisou e criou sem limites – de máquinas voadoras à anatomia humana. Estudou o céu e a terra. Dedicou-se às conexões entre a arte e as ciências da natureza. Passados 500 anos do seu falecimento, as contribuições de Leonardo não cessam de atingir o homem contemporâneo.

Sua trajetória tem sido alvo de vários estudos e publicações. É sabido que nasceu em Anchiano/Vinci, perto de Florença, filho de Piero da Vinci e de uma camponesa – Catarina Lippi. Seu pai era um homem próspero, atuou como tabelião para diversos mosteiros, ordens religiosas e comunidades judaicas. Por volta de 1451, estabeleceu-se em Florença.

Florença oferecia um ambiente estimulante para a criatividade. Sua economia havia prosperado, até se tornar um sistema que conectava arte, tecnologia e comércio. Dele faziam parte artesãos que trabalhavam com comerciantes e fabricantes de seda, para criarem tecidos que eram verdadeiras obras-primas. A cidade possuía a taxa mais alta de alfabetização da Europa. Ao abraçar o comércio, a cidade tornou-se um centro financeiro e um “celeiro de ideias”. O ambiente era propício ao desenvolvimento de inspiração humanista.

Em 1482, quando completou 30 anos, Leonardo trocou Florença por Milão. Esta cidade possuía o triplo do tamanho de Florença – 125 mil habitantes. Na época, a cidade estava sob o comando de Ludovico Sforza, o Mouro (Il Moro). Milão era menos rica e sofisticada que Florença.

Depois de se estabelecer em Milão, suas anotações passaram a ser habituais, por toda a vida. Constituem uma visão inigualável do trabalho de uma inteligência em busca de contínuo conhecimento – são os seus códices. Essas anotações incluem esboços e projetos, desenhos científicos e artísticos minuciosos, e observações escritas.

Retrato de Ginevra de’ Benci, 1474-78, óleo s/ madeira, 38,8 x 36,7 cm, Galeria Nacional, Washington, EUA – Arte: Leonardo da Vinci / Domíno público via Wikimedia Commons

Milhares de páginas que sobreviveram até hoje – cerca de 7.200 – representam provavelmente um quarto do que Leonardo produziu de fato. São registros e documentos de sua criatividade, voltados para aplicações. Após sua morte, vários cadernos foram desmembrados, vendidos ou reorganizados em novos códices.

Além de desenhos e projetos de máquinas civis e militares, entre os assuntos abordados estão: óptica, botânica, geometria, matemática, latim, tipos humanos – do ideal ao grotesco –, acontecimentos reais e visões apocalípticas. As notas sobre pintura são abundantes, a ponto de serem consideradas um tratado especial. Como engenheiro, as anotações descreviam mecanismos que observava ou imaginava. Como artista, rascunhava ideias e esboçava pinturas. Como produtor de espetáculos, fazia croquis para figurinos, criava engenhocas para palcos e cenários. Ao longo dos anos, com estudos mais aprofundados, desenvolveu pesquisas sobre voo, água, geologia, clima, aquecimento, mecânica, veículos e anatomia.

Leonardo era canhoto (ou ambidestro?). Escrevia da direita para a esquerda. Alguns biógrafos afirmam que ele adotou este modo de escrever para manter suas anotações em segredo, ou para serem lidas em espelho, o que é discutível. Os textos podem ser lidos com ou sem espelho. Outros estudiosos preferem afirmar que Da Vinci, na verdade, escrevia dessa forma para não borrar a tinta no papel, ao deslizar a mão esquerda. Essa forma também era utilizada no desenho.

Nesses estudos, anotações e desenhos, estabelecer qualquer diferença entre desenho artístico e científico deixa de ter sentido. Todas as manifestações gráficas de Leonardo aliam um e outro. Efetivamente, o valor do desenho demonstra a essencial relação entre Arte e Ciência. Assinala sua total confiança na ciência experimental e na matemática. Ciências certas e verdadeiras são uma espécie de mecânica, pela razão de que não se podem levar a termo senão manualmente. O desenho transforma-se numa espécie de máquina, na imprescindível conclusão e comunicação visual do processo mental.

Em 1500, volta a Florença. Esse retorno marca a elaboração de duas de suas famosas obras – a Mona Lisa e Santa Ana, a Virgem e o Menino. A Mona Lisa, iniciada em 1503, continuou a ser elaborada em Milão, Roma e acompanhou Leonardo até sua morte, na França. No início, tratava-se do retrato da esposa de um comerciante de seda. Ao longo do tempo, transformou-se em minucioso estudo técnico-científico de claro-escuro e, principalmente, em complexo aprofundamento das emoções humanas, imortalizadas no famoso sorriso. Conecta a natureza humana a um universo maior, estabelece interfaces, já anunciadas anteriormente na obra Ginevra de Benci. Segundo Kenneth Clark, a mais famosa obra de Leonardo tem todos os elementos e habilidades, em seus insights psicológicos, dificilmente observáveis à primeira vista.

Em 1513, Da Vinci muda-se para Roma, a convite de Giuliano de Médicis, irmão do Papa Leão X. Este foi um período difícil para o artista. Sempre que pôde, ausentou-se de Roma, tendo viajado para Parma, Milão e Florença. Em Roma, realizou projetos de saneamento para o porto de Civitavecchia. Nesse período, executou a famosa série de desenhos sobre o Dilúvio. A água sempre o fascinou. Na série, surgem visões apocalípticas, vislumbram-se ruínas da “frágil civilização humana”. Além dessa série, estudou os espelhos côncavos, para concentrar a luz do sol e produzir calor.

Estudo de embriões, 1509-14, giz vermelho e preto, caneta e aguada s/ papel, 305 x 220 mm, Biblioteca Real, Windsor, Reino Unido

Em 1516, com a morte de Giuliano de Médicis, Leonardo Da Vinci deixou Roma e aceitou o convite do rei da França, Francisco I. Em 1517, mudou-se para Amboise, onde passou a viver no castelo cedido pelo rei. Em 23 de abril de 1519, fez seu testamento.

Leonardo da Vinci foi famoso ainda em vida. Seu legado é inestimável. Apesar de parte significativa de suas obras ter desaparecido, e de seus códices sofrerem com desmembramentos ou falta de devida atenção, as contribuições do artista continuam surpreendendo.

Neste ano de 2019, Leonardo é alvo de várias homenagens, estudos, publicações e debates, através de exposições, conferências e cursos. São oportunidades de aprofundar ideias, esclarecer questões e ampliar o alcance de seus projetos e engenhosidades.

Pesquisas recentes enfatizam que seus cadernos e anotações não levam a um sistema fechado, mas documentam uma investigação experimental sempre nova e insatisfeita. Leonardo expressa sua vocação universal ao desenvolver temas e processos criativos, envolvendo a pintura, a arquitetura, artefatos para produções teatrais e interpretações musicais, cartografia e tecnologias voltadas às mais diversas atividades do ser humano.

Desse modo, suas criações projetam emergências que se conectam ao homem contemporâneo. Trata-se de denso universo, incluindo reflexões sobre a cidade ideal, saneamento, saúde, energia, máquinas, mobilidade e revitalização urbana.

Seu ateliê-laboratório, ou fábrica de ideias, transforma-se em plataforma para observar e pesquisar a natureza. Possibilita avançar, nas interfaces de Arte e Ciência, nas várias áreas do conhecimento. Traça simultaneamente caminhos para a visão do homem conectado à criatividade e à sensibilidade estética. Projeta a importância, cada vez maior, do conhecimento da arte e de sua história.

Em síntese, respostas às indagações sobre Leonardo Da Vinci não estão concluídas. Merecem mais estudos e revisões. Entretanto, deve-se reconhecer que Leonardo valorizou tanto as maravilhas observadas na natureza, quanto as que existem na imaginação.

 


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