Ainda que revogada ou atribuída como fake news, listas como essa não podem ecoar ou prosperar. A naturalização de um ato dessa ordem é o atestado de óbito do Estado democrático de direito. O próximo passo seria achar trivial queimar livros em praça pública – a Alemanha de 1933 seria referência. É dever de todos, pois, avaliar sua impertinência, seu equívoco, seu perigo. Afinal, o que levaria um burocrata a afirmar que Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues e outros do nosso cânone literário são impróprios para adolescentes? Por que afrontar as artes e a cultura do País com juízo inconsistente de valor? Que critérios usaram para censurar?
A rubrica da “inadequação” das 43 obras parece se afinar com pauta de costumes, afinal esses livros “têm muitas palavras”. Por sua vez, uma educação anódina, afastada da crítica e da realidade, que iniba o educando do contato com seu país real, é pedra de toque do governo federal e seu séquito iletrado.
Fica claro que aquele que proíbe nossos jovens de ler Macunaíma, é o mesmo que não reconhece o herói “sem caráter”, já que é múltiplo. O mesmo que impede o jovem de conhecer “o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório” de Euclides da Cunha, é aquele que desconhece a importância de Gilberto Freyre. A inadequação, portanto, significa apagamento, desmemória, esquecimento. A inadequação é eufemismo para censura que desqualifica nossa riqueza, nossa matriz artístico-cultural. A inadequação acaba por criar dúvida em relação à produção cultural brasileira.
O páthos das personagens de Nelson Rodrigues desnuda um Rio de Janeiro sui generis, abalado por comportamentos não convencionais, mas possíveis. O humano é revelado por uma psique, muita vez, terrível, abominável, trágica. Seus instintos inusitados, ao que parece, são uma contravenção para um mundo pasteurizado, em que meninos vestem azul e meninas, rosa; em que tudo é normalizado sob as regras inflexíveis que impedem que reconheçamos as enormes diferenças que nos caracterizam. A impropriedade, ou melhor, a censura a Agosto de Rubem Fonseca, por seu turno, talvez se baseie numa paranoia descabida, já que nele a investigação de um assassinato chega ao Palácio do Catete (residência do presidente da República) incriminando pessoas muito próximas a Getúlio Vargas e ligadas à crise política do País. Curioso.
Enfim, a lista dos livros proibidos assim como inúmeras decisões do governo Bolsonaro ou de seus aliados estaduais – como é o caso –, intempestivas e anacrônicas, principalmente aquelas que atingem a cultura e a educação, não refletem ignorância do agente do Estado, ao contrário, são seus balões de ensaio que visam a aferir nível de aceitação pública de certas medidas que atendam a uma agenda moralizante, cujo viés religioso representa parte significativa dos apoiadores do governo federal. Algo que atinge o cerne do Estado laico e, portanto, deve ser criticado. Assim foi o programa cultural de Roberto Alvim, assim foram os cortes na educação de Abram Weintraub e assim é a lista de Rondônia.
Neste último ano, restou às universidades, à imprensa livre, às instituições de classe, enfim, a toda sociedade civil organizada defender o que nos é mais caro: um Estado laico, democrático e republicano, mesmo a contragosto de forças obscurantistas que teimam em agredir a República.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 16/2/2020, na coluna Tendências/Debates.