Até os dicionaristas pererecam para definir palavras

Por Marcelo Módolo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Henrique Braga, doutor pela FFLCH/USP

 25/02/2022 - Publicado há 2 anos
Marcelo Módolo – Foto: Acervo pessoal
Henrique Braga – Foto: Acervo Pessoal

 

Um bom linguista sempre anda de ouvidos atentos para a fala cotidiana, lugar onde a língua é realizada sem muitos freios, com “a contribuição milionária de todos os erros”, como já dizia Oswald de Andrade. Foi com a fala cotidiana que dona Araci, moradora da interiorana cidade de Cerquilho (SP), chamou-nos a atenção, relembrando um verbo bastante comum por lá: o “pererecar”, em frases como “Por que você está pererecando para lavar esta louça?”.

Mas “pererecar” existe?

Leigos sobre o funcionamento das línguas vinculam o registro em dicionários à própria existência dos vocábulos, como se a língua surgisse apenas após ser referendada por eruditos – contrariando inclusive a visão mítica segundo a qual “no início era o verbo”.

No caso de “pererecar”, os principais dicionários de língua portuguesa registram o termo, mas parecem desconhecer essa acepção utilizada por moradores de diferentes regiões interioranas do país.

Para Cândido de Figueiredo (1913), “pererecar” é brasileirismo, verbo intransitivo, no sentido de mover-se vertiginosamente de um lado para outro; ficar desnorteado. Já Caldas Aulete (1945) também registra o verbo como brasileirismo, intransitivo, no sentido de mover-se de um lado para outro vertiginosamente; (fig.) ficar desnorteado. Também com a acepção de saltitar, dar pulos (usado para se referir ao movimento de um pião). Dicionários mais recentes (é o caso do Houaiss) parecem reproduzir os predecessores, ampliando um pouco seu campo semântico: andar às tontas, desnorteado, aturdido; dar saltos (o pião); saltar repetidas vezes (o jogador), e de modo inesperado, para fugir às disputas de bola; saltar, quicar (a bola) de modo inesperado, fugindo ao controle do(s) jogador(es).

Como mostram esses exemplos, o sentido com que o verbo é empregado no interior paulista – o de “ter dificuldades para algo”, “penar para realizar uma tarefa” – ainda não está contemplado em importantes obras de consulta.

De onde surge o termo?

Esse simpático verbo parece ser decorrência de seu étimo tupi perereg (origem também do termo “perereca”), que significava mover-se de um lado para outro vertiginosamente para conseguir alguma coisa – como se livrar de um perigo, ou agarrar um animal.

No emprego cerquilhense, quem “perereca” está, em sentido figurado, “movendo-se vertiginosamente”, dada a dificuldade de realizar uma ação. Exemplos de Amadeu Amaral, em seu O dialeto caipira (1920), abonam essa hipótese: “Este pião perereca demais”, “Pererequei pra agarrá o diabo do cavalo, quando êle se espantô”, “Ando pererecando pra arranjá uns cobre, mais tá dificel”.

Língua e pertencimento

O material linguístico estudado por Amaral refere-se predominantemente aos municípios de Capivari, Piracicaba, Tietê, Itu, Sorocaba e São Carlos, mas é interessante aprender com o autor que o dialeto caipira era muito usado em toda a província de São Paulo, não apenas pela maioria da população, mas também por uma minoria culta – o que deu aos paulistas a fama de “corromperem o vernáculo”, com seus “vícios de linguagem”. Ainda vivo em alguns lugares interioranos, o assim chamado “dialeto caipira” é um dos remanescentes do semicrioulo dos tupis e caboclos do Brasil colônia (ou seja, uma espécie de fusão dessas diferentes línguas), regado por muitas estruturas arcaizadas da língua portuguesa.

As características marcantes e influentes do dialeto da região, juntamente com sua rica produção cultural, parecem ser o que mantém a sua sobrevivência: é como se os falantes, conscientes de sua fala, a preservassem por uma questão de identidade e se tornassem, numa perspectiva da análise de discurso, narradores-produtores.

Em tempos de comemoração de 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, não custa lembrar-se também de alguns precursores – no campo linguístico – que valorizaram nossa linguagem regional. Mas reiteramos que a própria dona Araci funcionou, neste caso, como “madeleine proustiana” dessa relação.


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