Aniversário de Cora Coralina é festa da arte

Por Oscar D’Ambrosio, jornalista pela ECA/USP e gerente de Comunicação e Marketing da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo

 28/08/2020 - Publicado há 4 anos
Oscar D’Ambrosio – Foto: Reprodução / Youtube
A nossa vida é uma junção de retalhos para a qual atribuímos um sentido. Esse tipo de reflexão costuma ser muito ligada ao poema “Sou feita de retalhos”, atribuído muitas vezes por equívoco a Cora Coralina (1889-1985), cujo aniversário de nascimento é dia 20/8. A autoria, porém, é de Cris Pizziment, por ela publicado no seu Facebook, em 2013.

Na obra da artista visual Rosângela Politano, de Socorro (SP), evidencia-se o trabalho da arte de costurar retalhos com a mais importante, que é a de encontrar-se nos outros pedaços para compor o próprio tapete da existência. Torna-se assim essencial nessa caminhada entender a humildade de cada passo a ser dado.

Vale a pena conhecer o poema atribuído erroneamente a Cora Coralina:

Obra da artista visual Rosângela Politano, de Socorro(SP) – Foto: Reprodução

“Sou feita de retalhos.
Pedacinhos coloridos de cada vida que passa pela minha e que vou costurando na alma.
Nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas me acrescentam e me fazem ser quem eu sou.
Em cada encontro, em cada contato, vou ficando maior…
Em cada retalho, uma vida, uma lição, um carinho, uma saudade…
Que me tornam mais pessoa, mais humana, mais completa.
E penso que é assim mesmo que a vida se faz: de pedaços de outras gentes que vão se tornando parte da gente também.
E a melhor parte é que nunca estaremos prontos, finalizados…
Haverá sempre um retalho novo para adicionar à alma.
Portanto, obrigada a cada um de vocês, que fazem parte da minha vida e que me permitem engrandecer minha história com os retalhos deixados em mim. Que eu também possa deixar pedacinhos de mim pelos caminhos e que eles possam ser parte das suas histórias.
E que assim, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um dia, um imenso bordado de ‘nós’”.

A obra de Cora Coralina, que só obteve grande reconhecimento público quando já era idosa, principalmente graças aos elogios de Carlos Drummond de Andrade, em 1980, dialoga com o poema de Cris e com a tela de Rosangela no sentido de entenderem a arte como uma expressão da vida que se realiza pela troca de experiências.

Os poemas de Cora Coralina tratam de questões essenciais, como o trabalho:

“Minhas mãos doceiras
Jamais ociosas
Fecundas. Imensas e ocupadas
Mãos laboriosas
Abertas sempre para dar
ajudar, unir e abençoar.”

Ela ainda fala de uma vacina para combater os “erros e a violência”:

“Tempo virá.
Uma vacina preventiva de erros e violência se fará.
As prisões se transformarão em escolas e oficinas.
E os homens, imunizados contra o crime,
cidadãos de um novo mundo,
contarão às crianças do futuro, estórias absurdas de prisões, celas, altos muros, de um tempo superado.”

E valoriza a linguagem popular, que muitos insistem em considerar errada:

“A linguagem errada dos humildes tem para mim um gosto de terra
e chão molhado e lenha partida.
Jamais procurei corrigi-los como jamais tolerei o bem falante, exibido.”

Chamada pelo poeta mineiro de “Diamante Goiano”, Cora, na colcha de retalhos pintada por Rosangela Politano, está colocada ao lado de Cris, mostrando que todas integram a mesma festa da arte, uma densa e bela caminhada existencial em que se busca, pela soma e composição de fragmentos, ordenar internamente a aparente desordem universal.

Nesse sentido, o poema “Assim eu vejo a vida” traz uma síntese do legado existencial da poeta goiana:

“A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.”

 


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