A USP Filarmônica e as quatro teses da Semana 22

Por Rubens Russomanno Ricciardi, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP

 27/07/2023 - Publicado há 9 meses
Rubens Russomanno Ricciardi – Foto: Reprodução/IEA-USP
Atendendo a um honroso convite do professor Marcelo Lopes, diretor executivo da Fundação Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), a USP Filarmônica se apresentou no Festival de Inverno de Campos do Jordão, no dia 1º de julho, e na Sala São Paulo, no dia seguinte, 2 de julho. A íntegra do concerto pode ser vista aqui.

O convite envolvia ainda a igualmente honrosa atuação conjunta da USP Filarmônica com o Coro Acadêmico da Osesp, brilhantemente dirigido pelo maestro Marcos Thadeu. O que talvez fosse apenas uma bem-sucedida parceria de ensino da música coral-sinfônica – incluindo a atuação solista de alunos cantores do Coro Acadêmico da Osesp e de estudantes instrumentistas da USP Filarmônica – representou, de fato, todo um resultado das pesquisas da USP de Ribeirão Preto, visando à reconstrução de memória da música brasileira.

Com o respaldo do Núcleo de Pesquisas em Ciências da Performance em Música (NAP-Cipem), as iniciativas da USP Filarmônica de editar ou orquestrar obras de compositores e poetas pretos e pardos brasileiros dos séculos 18 e 19 já se desdobravam numa série de concertos desde o ano passado: primeiro pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP, no Anfiteatro Camargo Guarnieri, em São Paulo; e depois no Theatro Pedro II, em Ribeirão Preto, e também pela USP em São Carlos – estes dois últimos campi, sedes dos concertos mensais da USP Filarmônica. O que chamou a atenção da Osesp foi o contexto inédito do repertório, voltado às ancestralidades negras da música brasileira, culminando com a recuperação de sonoridades esquecidas – e ainda há muito a ser feito para tirar nossos artistas do passado, ex-escravizados ou descendentes de escravizados, dessa triste invisibilidade.

Foram de grande simbolismo as presenças do pró-reitor de Graduação da USP, o professor Aluisio Augusto Cotrim Segurado; da pró-reitora adjunta de Pesquisa, a professora Susana Inês Cordoba de Torresi; e do superintendente de Comunicação Social da USP, o professor Eugenio Bucci. Afinal, muito nos alegra que a comunidade uspiana esteja ciente da vocação da USP Filarmônica voltada ao ensino e à pesquisa, cujo palco é um laboratório permanente para estudantes e professores da USP atuarem em conjunto – sem jamais esquecer a inovação e a contribuição para o conhecimento por parte da nossa universidade.

Por outro lado, dando prosseguimento ao legado deixado pelos saudosos professores Olivier Toni, Régis Duprat e o mestre Adhemar Campos Filho, a pesquisa da USP Filarmônica contemplou um contraponto crítico aos protagonistas da Semana de 22 e dos manifestos modernistas – Oswald de Andrade e Graça Aranha – por conta da cristalização tardia de pelo menos quatro entre as suas teses em relação às artes brasileiras do Período Colonial e do século 19:

1) “sempre, pelo menos, 50 anos atrasadas”;
2) “desprovidas de brasilidades”;
3) “voltadas às elites”; e
4) “tudo que fosse anterior à Semana de 22 deveria ser jogado no lixo”.

Claro que a questão não consiste na irreverência de quem pretendia provocar polêmica, mas tem a ver com os acadêmicos das gerações seguintes, os quais confundiram sandice leviana com teoria e história das artes. Eis que o concerto da USP Filarmônica na Sala São Paulo pode nos levar a reconsiderar essas quatro teses, até aqui insistentemente reiteradas. Apresentaram-se obras daqueles que deveriam constar entre os grandes artistas brasileiros de todos os tempos: Manuel Dias de Oliveira (1734/1735 – 1813), Domingos Caldas Barbosa ou Lereno Selinuntino (ca. 1740-1800), José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (17??-1805), José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), João de Deus de Castro Lobo (1794-1832), José Maria Xavier (1819-1887) e Anacleto de Medeiros (1866-1907) – além de autores anônimos e talvez dos únicos dois consagrados do repertório: Antônio Carlos Gomes (1836-1896) e Alfredo da Rocha Vianna Filho ou Pixinguinha (1897-1973).

Portanto, respondendo às teses modernistas:

1) O repertório em nenhum momento demonstra “atraso” poético. As obras contemplam sempre inovação e foram modernas em suas épocas.
2) São brasilidades inequívocas, entre outras, tanto o negro spiritual avant la lettre do solo de contralto no Miserere de Manuel Dias de Oliveira, os versos em tom popular de Lereno (que inaugurou a canção popular brasileira), as linhas melódicas da modinha de José Maurício e as sonoridades de festa junina no Gradual de Nossa Senhora, de Emerico Lobo de Mesquita.
3) Desde os seus primórdios, na música brasileira, houve por parte dos mesmos músicos de todas as classes a atuação multifária, vocal e instrumental, na execução solista até as maiores formações, mesmo sinfônicas, com música em tom popular (desde os batuques, os lunduns e as modinhas e todo o folclore), sacra, militar, de concerto, ópera e música de câmara misturando todas elas, sem esquecer as então artinhas (composições musicais nos manuais didáticos). Ou seja, as ditas elites (num sentido pejorativo) são aqueles que lucram com a acumulação do capital – não os nossos artistas ex-escravizados ou filhos de escravizados do passado.
4) A qualidade artística de todo o repertório não deixa dúvidas de que precisamos olhar com maior atenção para as nossas ancestralidades negras (sem esquecer ainda as indígenas e toda a diversidade das populações em território nacional), bem como para as artes brasileiras como um todo, desde o seu passado mais remoto.

Por fim, a Osesp já convidou a USP de Ribeirão Preto para mais um concerto na Sala São Paulo, dessa vez sendo representada pelo Ensemble Mentemanuque (solistas da USP Filarmônica), no próximo dia 19 de novembro – comemorativo à Consciência Negra – quando apresentaremos todo um novo programa musical, mas igualmente de artistas da poíesis (autores da elaboração inventiva de obra de linguagem) pretos e pardos, incluindo compositoras negras e compositores negros contemporâneos. Todos estão convidados!

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