A educação pública em alerta: reflexões sobre o projeto de lei de gestão compartilhada das escolas públicas municipais

Por Carlota Boto, professora e diretora da Faculdade de Educação (FE) da USP, e Selma Rocha, doutora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 14/09/2022 - Publicado há 2 anos
Carlota Boto – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

 

Selma Rocha – Foto: Reprodução

 

Discorrer sobre o Projeto de Lei 573, de autoria da vereadora da cidade de São Paulo Cris Monteiro, do partido Novo, que prevê gestão compartilhada das escolas públicas de ensino municipal a partir de parceria entre o Estado e organizações da sociedade civil, convida-nos a retomar aspectos da história da escola pública em terras brasileiras. Embora exista oficialmente na forma de aulas régias desde o período pombalino, a escola pública, tal como a conhecemos hoje, se qualifica como instituição a partir da República, quando são construídos grupos escolares, os quais tinham por intuito a perspectiva de formar futuros cidadãos republicanos. Havia sido feita uma república para a nação; entendia-se agora ser necessário fazer uma nação para aquela república. Para tanto, o papel dos grupos escolares era o de se apresentar à sociedade como templos da República.

Entretanto, os grupos escolares atingiam apenas uma pequeníssima parcela da população, com a maior parte das crianças fora da escola ou confinadas a escolas isoladas, com classes multisseriadas. Foi assim que, a partir dos anos de 1910, movimentos de caráter nacionalista propunham-se a incentivar a criação de escolas por iniciativa das câmaras municipais. Destaca-se, nesse sentido, a atuação da Liga Nacionalista de São Paulo. Nos anos de 1920, inúmeras reformas da instrução pública em vários Estados da federação anunciavam o surgimento no Brasil do movimento da Escola Nova. Em 1932, era publicado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, dirigido ao povo e ao governo. A proposta daqueles educadores, reunidos em torno do referido manifesto, era a de republicanizar a República, democratizando a escola. Democratizar a escola significava, naquela altura, a um só tempo, expandir as oportunidades escolares para um conjunto mais amplo da população em idade escolar e aprimorar as relações democráticas no âmbito da sala de aula. Esse plano supunha o engendramento de uma escola verdadeiramente nacional, a partir do modelo republicano francês: escola pública, universal, única, gratuita, laica, obrigatória e para ambos os sexos.

O Brasil, então, no mínimo, desde o governo Vargas, tem uma história de escolarização pública com compromisso de universalização, o que significa que o Estado não pode – inclusive constitucionalmente desde 1934 – se furtar de sua missão de criar e manter o ensino público e gratuito. O projeto de lei em tela fere por completo o caráter público da escolarização. Tramitando hoje na Câmara dos Vereadores de São Paulo, sob iniciativa da vereadora Cris Monteiro, constitui uma desresponsabilização do poder público em relação a seu dever legal de gerir a escolarização pública, ferindo, portanto, os artigos 205, 206, 208, 211 e 213 da Constituição, assim como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, particularmente no que se refere à autonomia das escolas. O PL tem evidente vício de iniciativa, pois o parlamento não tem competência para legislar sobre a matéria. Além disso, instaura uma lógica de gestão privada para administrar a coisa pública. Ou seja: aquilo que é apresentado como modernização do modelo educacional representa, na verdade, a expressão do atraso, como se o Estado renunciasse a seu dever educacional.

Com efeito, o que se mostra evidente é a ausência de explicações que fundamentem a proposta. Não há qualquer referência a estudos sobre os indicadores educacionais na cidade e nas escolas, ainda menos qualquer referência à investigação sobre questões sociais e culturais vividas pelas crianças, jovens e adultos, particularmente depois da pior fase da pandemia, nos territórios onde se situam as unidades educacionais. O PL ignora os desafios de alteração e desenvolvimento dos projetos político-pedagógicos, no contexto da política educacional levada a efeito pelo governo municipal, bem como as definições estabelecidas nos Planos Municipal, Estadual e Nacional de Educação – não se sabe se por desconhecimento das questões públicas afetas à educação ou conveniente descaso.

Pelo menos dois aspectos interdependentes merecem destaque. O primeiro: o programa possibilitaria uma grade “mais aberta ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”. Estes são princípios constitucionais que devem nortear a educação nacional no que se refere aos diferentes campos do conhecimento e a produção de ideias e da cultura nas escolas. Por que compartilhar a gestão da escola com uma organização social tornaria a instituição escolar “mais aberta ao pluralismo”? Na verdade, a parlamentar pretende identificar e reduzir a liberdade ao léxico do mercado, isto é, à expressão e à prevalência dos interesses da competição. Para favorecer os interesses particulares figura o universal, lançando mão de princípios que devem valer para qualquer instituição educacional no País.

O segundo aspecto decorre do primeiro, pois a liberdade identificada e reduzida à liberdade de concorrência contribuiu para deslocar o que deveria ser tratado na esfera pública para o campo gerencial, de tal sorte que a gestão da escola passa a ser concebida a partir dos padrões de eficiência consagrados pelo mundo empresarial. Tal simplificação, que reduz sobremaneira a complexidade dos desafios da experiência educativa e da instituição escolar, torna possível que os diferentes interesses privados estejam presentes nas escolas para, por meio da comercialização de plataformas, diferentes materiais didáticos e práticas de treinamento de professores, conferir aos processos curriculares dinâmicas prescritivas amparadas na Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Está em causa subtrair dos estudantes o direito aos fundamentos do conhecimento em diferentes campos: dos professores, a condição de sujeitos; e da escola, o papel de investigação e elaboração sobre as formas de pensar e se comunicar dos estudantes e sobre as diferentes áreas de conhecimento. A pretensa gestão compartilhada com organizações sociais compromete a condição das unidades educacionais como espaços de produção, ressignificação e difusão da cultura.

Tal proposta, caso implementada, implicará retirar da equipe pedagógica da escola – os professores e o corpo técnico – a atribuição de coordenação da formulação e gestão do projeto político e educacional da instituição, assim como levar a efeito o esvaziamento da capacidade da escola em tratar da política educacional em suas múltiplas dimensões. Os argumentos utilizados no projeto de lei se apresentam como um subproduto da racionalidade neoliberal de gestão do Estado que tem operado, em diferentes países, o reordenamento jurídico e institucional para atender à força do capital concentrado por poderosos oligopólios e instituições financeiras.

A qualidade da escola deixa de ser questão a ser tratada publicamente a partir do debate e decisões democráticas. Tal processo de despolitização pretende afastar professores, gestores, estudantes e familiares da discussão do projeto escolar e das políticas educacionais e seus princípios, para deslocar esse poder para os gestores. A esses caberá administrar os problemas segundo uma suposta competência técnica, alheia às experiências das instituições escolares e à história das pessoas em seus territórios.

À luz do exposto, nota-se que, caso aprovado, o projeto de lei tenderá a alienar os sujeitos e a sociedade, para, compartilhando a gestão das escolas com organizações sociais, permitir uma espécie de “colonização mercadológica”, que torna opacas as fronteiras entre o público e o privado, de tal sorte que, finalmente, os fundos públicos estejam subordinados, de diferentes maneiras, às dinâmicas e aos poderosos interesses que movimentam o mercado educacional.


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