Direito humano e universal

Miguel Buzzar, vice-diretor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP, Paulo Martins, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP) e Vladimir Safatle, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 13/06/2022 - Publicado há 3 anos
Miguel Buzzar – Foto: Reprodução/Facebook
Paulo Martins – Foto: Arquivo pessoal
Vladimir Safatle – Foto: Pública

 

Há perguntas que não são perguntas. Pois a maneira com que são construídas expressam a enunciação de uma certeza, não a abertura a uma questão. Colocar o problema da cobrança de mensalidades em universidades públicas como uma pergunta sobre se ricos deveriam ou não pagar para nelas estudar é o caso de uma pretensa questão que já claramente induz à resposta e naturaliza suas consequências.

Pois o problema poderia ter sido colocado de várias outras formas. Por exemplo: “a educação superior pública deveria deixar de ser gratuita?”; “pessoas pobres que estudam em universidades públicas deveriam, a partir de agora, submeter-se a decisões discricionárias sobre se terão ou não direito a bolsas?”; “o Estado deveria se desresponsabilizar sobre o financiamento integral de suas universidades públicas, que são responsáveis pela quase totalidade da pesquisa no País?”.

É claro que somos contra privilégios das classes mais ricas, mas o eterno tópico das mensalidades das universidades públicas é apenas uma maneira de fazer, na verdade, os pobres e a classe média pagarem para suas filhas e filhos obterem uma formação de qualidade. Pois a virtude do tempo mostra a verdade das intenções aparentemente justas e puras. Nos países onde o sistema universitário público adotou mensalidades, a história foi a mesma. Primeiro, a definição de quem é “rico” vai paulatinamente ampliando-se. Para termos um exemplo, 60% das alunas e alunos da Universidade de São Paulo vêm de famílias que ganham até 10 salários mínimos. Se uma família que ganha 10 salários mínimos, com pai, mãe e dois filhos, for considerada rica — e paga aluguel e plano de saúde e o ensino superior for pago —, um dos filhos terá que deixar de estudar, como aconteceu em vários países.

“Mas podemos criar bolsas de estudos para os que não podem pagar”, dirá o apóstolo da educação neoliberal. No entanto, por uma dessas coisas inexplicáveis que ocorrem em todos os lugares, o número de bolsas nunca é suficiente. Isso fez com que vários estudantes em várias partes do mundo tivessem que contrair dívidas para estudar, iniciando a vida profissional endividados. O que não deixa de ser uma bela maneira de fazê-los submissos a qualquer emprego que consigam o mais rápido possível.

A partir do momento que o Estado se desengaja pontualmente de suas universidades, ele tende a se desengajar integralmente. Isso faria com que as universidades aumentassem suas mensalidades, criassem grupos diferentes de estudantes (exemplo: os estudantes não paulistas pagariam mais que os paulistas para estudarem nas universidades paulistas) e cobrassem fortunas por “cursos de especialização” e “de verão”.

Já os ricos que deveriam pagar mensalidades fariam o que fazem cada vez mais atualmente, ou seja, enviariam seus filhos e filhas para estudarem em universidades estrangeiras. Mais à frente certamente ganhariam diminuição de impostos como benesse de um Estado com menos responsabilidade social — além de poderem contar em suas empresas com recém-formados docilizados pelo endividamento.

No entanto, se quisermos efetivamente fazer justiça social, sugerimos outra pergunta: “É razoável que ricos paguem impostos sobre grandes fortunas, sobre consumo conspícuo e transações financeiras para financiar um grande projeto de universidade pública, gratuita, de qualidade e popular?”. Afinal, ensino como direito humano deveria ter garantido seu acesso de forma universal.

(Artigo publicado originalmente na seção Tendências e Debates, do jornal Folha de S. Paulo, em 10/6/2022)


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