Da Noite dos Cristais Quebrados ao Dia da Consciência Negra

Por Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 18/11/2022 - Publicado há 1 ano

“Educar para a cidadania” deve ser considerada como a principal estratégia para combatermos as manifestações de racismo no Brasil sob as suas múltiplas facetas, especialmente do antissemitismo, da islamofobia, do anticiganismo e da antinegritude. De acordo com a lei brasileira nº 7.716/89, a cor da pele, religião, orientação sexual e identidade de gênero não podem interferir nos nossos valores, gerando posturas negativas, que violam a dignidade da pessoa humana e o direito à intimidade. Portanto, não devemos nos calar diante das manifestações de ódio e de intolerância que, em tempo presente, geram situações de violência e exclusão social.

Devemos ter consciência de que, nem sempre, os efeitos do racismo são visíveis, escancarados, gritantes; nem sempre são fáceis de serem detectados, ainda que os impactos – muitas vezes sutis – se manifestem na saúde física e mental dos discriminados. Como educadores devemos estar atentos às situações produtoras de estresses que atingem principalmente as crianças e os mais jovens em nossas escolas, desde a creche até a universidade. Portanto, identificar, denunciar e combater o racismo nas suas múltiplas formas de expressão devem fazer parte dos nossos programas, valendo-nos das principais ferramentas pedagógicas que temos em mãos: a informação e a produção de conhecimento. Alguns assuntos não devem ser evitados, ainda que eles “não nos dizem respeito”, como alegam alguns, por tratarem dos “problemas do outro”. Assim, a pauta antirracista não é exclusiva de um grupo formado por pretos, pardos, ciganos, indígenas, judeus ou muçulmanos, dentre outros. E, muito menos, o debate deve depender de uma disciplina obrigatória regularizada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que contemple o tema “racismo”.

Como educadores, teremos sempre a oportunidade de instigar novas pesquisas e gerar interessantes debates oferecidos por algumas datas históricas que, por seus simbolismos, podem gerar ações de conscientização e de prevenção contra o racismo. Retomo aqui duas datas: a Noite dos Cristais Quebrados, rememorada principalmente pela comunidade judaica, em 9 e 10 de novembro; e o Dia da Consciência Negra, agendada para o próximo domingo, dia 20. Ambas as datas exigem reflexão e discussão permanente, independentemente de qualquer governo de transição.

Ao rememorarmos a história da Kristallnacht ou a Noite dos Vidros Quebrados, como ficou conhecida, e suas consequências, teremos a oportunidade de analisar um fato que se tornou referência para a História do Holocausto por suas dimensões históricas, psicológicas e pedagógicas. Digo isso pela força do simbolismo da violência que atravessou a noite de 9 para 10 de novembro de 1938, varando a madrugada. Longa noite que entrou dia afora e penetrou muitas noites adentro ao escancarar as portas da Europa para a circulação do Mal. Essa onda de violência contra os judeus espalhou-se por todo o Reich, dando continuidade aos pogroms que, antecipadamente, vinham sendo organizados por Joseph Goebbels, ministro alemão da Propaganda, e outros líderes nazistas. Resumindo: enxertos cotidianos do programa de um Estado totalitário, racista.

Tal ocorrência extrapolou a dimensão de um pogrom antissemita organizado pelo governo alemão para se tornar um marco de ruptura na história do Holocausto. Denominá-la de “infame” pela selvageria e brutalidade do ataque é pouco, pois a violência orquestrada por Reinhard Heydrich – chefe dos serviços de segurança do partido nazista e que mais tarde comandaria a execução da Solução Final para a Questão Judaica – repercute ainda nos dias de hoje. Como assim?

Hoje – em plena semana do 15 de novembro, quando comemoramos a Proclamação da República -, aquela noite repercute entre nós como se fosse um carrilhão desafinado cujos sons não formam nenhuma melodia, mas soam como sussurros de memória, carregados de ensinamentos para o futuro. Difícil imaginar, após 84 anos, o som da quebra das vitrines de cerca de 8 mil lojas de proprietários judeus, a luz e o estalar das chamas de 200 sinagogas na Alemanha e Áustria queimadas pelos vândalos nazistas, assim como os gritos de 30 mil presos levados para campos de concentração? Entre os mortos foram identificados 91 judeus.

No entanto, imagens dessa violência marcada pelo antissemitismo crônico endossado pelo Estado alemão nacional-socialista, ressurgiram nesta semana quando o Yad Vashem, sediado em Jerusalém, disponibilizou um inédito álbum de fotografias produzidas por dois fotógrafos à serviço do nazismo que, in loco, registraram cenas indescritíveis. Impossível ignorar o índice de informações que as fotos em P&B – anexadas nesse álbum doado pela família de um ex-militar americano – carrega nos seus diferentes tons de cinza. Os semblantes aterrorizados das vítimas judias (perplexas, estáticas e paralisadas pelo medo) expressam a complexidade do acontecimento. Ficam evidentes dois campos opostos, filtrados pelo olhar do fotógrafo, também perpetrador. Ainda que distantes no tempo, não podemos ignorar os dias terríveis que vieram após a Noite dos Cristais Quebrados. Tais imagens podem ser acionadas como mediadoras enquanto registro do passado e a nova geração que, ainda, depende de definir seus vínculos de afinidades eletivas. Que esta recorrência histórica que denuncia os estragos causados por um Estado racista nos instigue a pensar uma pauta para o Dia da Consciência Negra.


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