O Código Civil aos 20 anos

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 14/03/2023 - Publicado há 1 ano

Aprovado em 2002 e em vigor desde janeiro de 2003, o Código Civil – que é vital para as relações privadas na sociedade – completou duas décadas de existência. Embora tenha mais de dois mil artigos, a quantidade não é problema. O que importa são dois fatos.

Em primeiro lugar, o projeto desse Código foi escrito entre 1968 e 1972, num dos momentos mais sombrios da ditadura militar. Depois, ficou num escaninho e só foi desengavetado no final da década de 1990, quando o País voltara à democracia e vinha redigindo uma Constituição. De que modo essa trajetória entre um regime ditatorial e um regime democrático influenciou sua orientação jurídica e sua redação?

Em segundo lugar, o período entre 1968 e 2002 foi marcado por transformações sociais, econômicas e culturais na vida brasileira. O problema é saber se as inovações introduzidas pelo Código Civil no âmbito de temas tão diversificados, como propriedade privada, servidões, contratos, direito de empresa, títulos de crédito, regras matrimoniais e direito das sucessões, deram os resultados esperados por seus autores. Em que medida parte desses dois mil artigos já não estaria defasada quando o texto foi aprovado e sancionado?

Concebido por um grupo de juristas conservadores, em termos ideológicos e doutrinários, o projeto começou a ser escrito em um período de industrialização, com seus valores consumistas e hedonistas, por um lado, e de transformação geocupacional, por outro lado, do qual resultaram o crescimento desenfreado da urbanização, mudanças significativas no perfil do trabalho e agravamento das disparidades sociais. No campo cultural, industrialização e urbanização corroeram valores atávicos da sociedade brasileira e colocaram em debate público questões sobre liberdade sexual, novas formas de constituição da família, democratização da palavra, inovação de linguagem e culturas alternativas.

Por seu conservadorismo, os membros da comissão encarregada do projeto se viram diante de um impasse. Como lidar com questões? Em que medida não corriam o risco de tratá-las em termos de conceitos morais e jurídicos originados na transição entre os séculos 19 e 20? Inversamente, saberiam fazer uma autocrítica, dispensando um tratamento inovador às necessidades sociais, negociais e comportamentais? E como a sociedade brasileira sempre foi estratificada, que resposta dariam à pergunta que indaga se as pessoas podem ser legalmente iguais, ainda que sejam social, econômica e culturalmente desiguais? De que modo reagiriam se lhes fosse indagado se os brasileiros são cidadãos diferentes com direitos iguais ou se são cidadãos iguais que deveriam ter direitos distintos?

Independentemente das respostas que poderiam dar, essas perguntas apontam outras considerações que também questionam o quadro tradicional de referências principiológicas do direito privado brasileiro. Entre as mais de três décadas em que o projeto do Código Civil foi elaborado, ficou engavetado e foi desengavetado e votado pelo Congresso, os altos e baixos da economia geraram falências, provocaram desemprego e aprofundaram vulnerabilidades sociais. Além disso, a concentração da população pobre e sem emprego fixo na periferia das regiões metropolitanas levou ao crescimento dos movimentos sociais e das lutas por moradia, o que resultou no uso cada vez mais politizado do direito civil.

No caso específico das ocupações de propriedades urbanas, os advogados dos movimentos sociais passaram a invocar um direito de moradia justificado com base em argumentos morais, contrapondo-o ao direito de propriedade previsto pelo novo Código Civil. No período em que o projeto começou a ser elaborado, prevaleciam nos tribunais litígios interindividuais. Já no período em que o projeto foi votado no Congresso, os movimentos sociais, com sua concepção de advocacia voltada a questões com impacto político, alteraram o perfil dos litígios judiciais. Por meio de iniciativas conscientizadoras e baseadas numa ética comunitária, a nova forma de atuação jurídica dos movimentos sociais promoveu uma crescente coletivização das ações judiciais, provocando uma enorme sobrecarga no Judiciário.

O aumento do número de novas ações possessórias e a mudança de seu perfil qualitativo não se limitaram a abrir caminho para uma crise de eficácia, por um lado, e de legitimidade, por outro, nas diferentes instâncias da Justiça. Também estimularam, em matéria de interpretação da ordem legal, o intercruzamento entre o texto do Código Civil aprovado em 2002 e o texto da Constituição promulgada quatro anos antes. Um exemplo desse intercruzamento é o inciso XXIII artigo 5º da Constituição, que define a “função social da propriedade”. Trata-se de uma norma principiológica que, por sua indeterminação semântica, exige dos juízes um esforço não dogmático para decidir uma colisão de princípios que se encontram em tensão na resolução de um caso concreto.

Assim, se os tribunais passarem a julgar os casos de ocupação de terras e imóveis urbanos apenas pela ótica do direito de propriedade, eles favorecerão os proprietários, tratando o litígio entre proprietários e ocupantes como um problema conjuntural em matéria de direito civil. E se atribuírem o sentido da “função social” ao chamado direito de moradia, os tribunais passarão a tratar as ocupações como um problema estrutural, o que envolve políticas públicas de urbanização e de habitação. Este é, em outras palavras, o que os especialistas em teoria do direito chamam de caso difícil: se a primeira opção é muito contida em termos de justiça substantiva, a segunda é polêmica politicamente.

As tensões suscitadas por esse importante inciso do artigo 5º da Assembleia Constituinte exigiram das comissões técnicas do Congresso adaptações e emendas no texto do projeto de Código Civil que os parlamentares vinham então discutindo. Em outras palavras, o que os constituintes aprovavam muitas vezes colidia com certos tratamentos jurídicos que haviam sido propostos pelos autores do projeto do Código ou por parlamentares que propuseram alterações no texto original.

Outro problema decorrente do hiato entre o início de sua redação, em 1968, e de sua entrada em vigor, em 2003, está no plano internacional. Ele resulta da globalização dos mercados de bens, serviços e finanças ocorrida entre os séculos 20 e 21, que afetou o papel centralizador dos Estados nacionais. Parte de sua titularidade legislativa foi deslocada para ambientes supranacionais, como os organismos multilaterais, que passaram a pressionar os governos a desregulamentar suas economias e a promover a autorregulação dos mercados. Com o surgimento de novas fontes e formas de produção do direito em espaços supranacionais, os parlamentos perderam a prerrogativa exclusiva de limitar às estruturas constitucionais do Estado nacional.

Além disso, em decorrência do descompasso entre a crescente velocidade das transformações tecnológicas e a morosidade com que os Estados nacionais costumam legislar em matéria de direito privado, os autores do projeto do Código Civil não anteviram os negócios firmados por meios eletrônicos, o comércio virtual, o advento de moedas alternativas, a revolução biotecnológica, as novas formas de constituição da família e a necessidade de formatações em matérias inéditas de responsabilidade jurídica.

Esta é a sina do Código Civil de 2003 – um texto legal que pretendia ser doutrinariamente inovador, mas que, após vinte anos, precisa ser atualizado. Embora tenha tratado aqui apenas de alguns pontos por razão de espaço, o fato é que ele já mostra sinais de arcaísmo – o que tende a aumentar quanto maior for o descompasso entre o ritmo das transformações econômicas, tecnológicas, sociais e culturais e a morosidade do processo legislativo convencional.

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