Autor, narrador

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 01/09/2023 - Publicado há 8 meses

A palavra cão não morde
João Adolfo Hansen

Convido-lhes a fazer um experimento. Assistam a qualquer programa veiculado na internet sobre letras de música. Na maioria dos casos, os produtores de conteúdo se esforçarão ao máximo para “provar” que determinados versos da composição seriam modos de o artista confessar suas dores, manifestar seus vícios ou protestar contra aqueles que o fizeram sofrer. Por incrível que pareça, esse modo de interpretar textos como decalque biográfico remonta ao século XIX, período em que foi inventada a moderna crítica literária.

Após questionarem os sistemas que preceituavam os modos como escrever em prosa e verso – vigentes entre a Antiguidade greco-latina e o final do século XVIII –, os especialistas (seres entendidos em saberes particulares) criaram ou derivaram novas áreas de conhecimento, atrelando a elas disciplinas que anunciavam um novo paradigma nas artes. A partir do Romantismo, passou-se a defender o fim das regras de composição; a derrubada de modelos; a relativa superação das artes retórica e poética; a ênfase na suposta originalidade do artista em geral e do escritor em particular.

Com o advento do Romantismo, floresceram duas correntes críticas que mantinham alguns pontos de contato entre si: o biografismo e o impressionismo. Ora as obras literárias “explicavam” pontos obscuros relativos à “existência” do escritor de carne e osso; ora permitiam avaliar a arte de escrever como projeção dos efeitos (ou impressões) provocados(as) pelo autor e sua obra no leitor.

Essas maneiras de ler ora se distanciaram, ora se combinaram, ao longo das décadas, de maneira que tanto os escritores quanto os críticos românticos começaram a discorrer em nome da sinceridade autoral e dos sentimentos nutridos pelo poeta ou romancista, supostamente revelados em sua ficção (ou desvelados por ela). Ora, levou muito tempo para que esses pressupostos e métodos fossem revisados.

Isto não é um cachimbo (1973), de Michel Foucault, e Câmara clara (1980), de Roland Barthes, podem ser consideradas obras decisivas para que se retomasse a ideia de representação. Seja ao observarmos uma gravura emoldurada, seja ao analisar uma fotografia, o que está em jogo não é a busca pela verdade essencial do pintor ou do fotógrafo; mas o modo como ele representou/registrou pessoas, objetos, figuras geométricas, formas abstratas etc.

Analogamente, quando o autor publica uma crônica em jornal ou em livro, o enunciador daquele texto não se confunde necessariamente com a pessoa empírica do escritor. Por ser um aparato simbólico, a oscilar entre a denotação e a conotação, o texto porta a voz do escritor; contudo, isso não significa que o Eu subjacente à crônica seja expressão natural (ou seja, sem artifícios) e sincera do autor. Ainda quando se trata de um relato pessoal, o Eu que comparece ao texto representa pensamentos e ações do autor, sem se confundir compulsoriamente com ele.

Isso explica por que Tomás Antônio Gonzaga não é Dirceu; por que Machado de Assis não pode ser equiparado ao narrador-personagem Brás Cubas; por que Chico Buarque não se confunde com as personagens femininas que povoam suas letras; por que Rita Lee não se resumia à condição de “ovelha negra da família” etc. Letras de música e poemas não expressam obrigatoriamente o ser-e-estar do letrista ou poeta no mundo. Se assim fosse, todo cantor agiria, em seu cotidiano, de modo fiel e coerente às juras de amor expressas em suas canções.

Em lugar de “descobrir” lances biográficos em letras de música, poemas, contos ou romances, atentemos para a dicção do narrador. Observemos como as personagens podem ser similares ou contrastantes. Notemos como a persona inventada pelo poeta ou romancista se exprime em variados gêneros – seja como um Nós (nas epopeias), como um Tu (nas tragédias, diálogos ou cartas), como um Eu (nos versos que simbolizam as dúvidas e dores de uma voz que se queixa do que sente). Investiguemos se a paisagem retrata uma ideia fixa do autor que inventou a trama, ou se ela constitui um ingrediente que ilustra as ações adotadas pelas personagens que participam da cena.

Reduzir a interpretação do texto literário ao biografismo pode condicionar a qualidade da ficção ao maior ou menor grau de verdade comunicada pelo narrador ou personagem. Narrador e personagem participam das instâncias narrativas, ou seja, das múltiplas camadas do texto, seja um poema, seja uma letra de música.

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