Democracia, sempre?

Por Guilherme Ary Plonski, professor da Escola Politécnica e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), ambas da USP

 16/01/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 18/01/2023 as 15:32

Não poucas vezes ouvimos falas ou lemos textos em que as universidades são caracterizadas como entes respeitáveis, mas ensimesmados, parados no tempo e quase inamovíveis na forma de atuar. O argumento central dos artigos iniciais publicados no generoso espaço concedido pelo Jornal da USP é o de que essa descrição não corresponde à realidade.

Surgidas há cerca de mil anos, as universidades no mundo ocidental são originalmente concebidas como instituições de preservação e transmissão cultural, e durante vários séculos desempenham essencialmente esse papel. Todavia, mantendo o propósito original, as universidades se modificam radicalmente a partir do século 19, com a introdução da pesquisa no escopo de suas atividades, o que altera também o processo de ensino-aprendizagem. A intensidade dessa transformação a leva a ser denominada “revolução acadêmica”, mais precisamente, a primeira delas.

O movimento transformacional se acelera a partir da segunda metade do século 20, com as universidades passando gradualmente a se tornarem contribuintes relevantes para o desenvolvimento regional. Um marco simbólico dessa nova fase é a criação, em 1951, do parque tecnológico pioneiro, numa iniciativa conjunta da Universidade de Stanford e da cidade de Palo Alto, que a abriga. Como é sobejamente conhecido, esse empreendimento está na raiz do afamado Vale do Silício. Um descendente daquela iniciativa é o corrente edital da National Science Foundation norte-americana para apoiar, com valores expressivos, o estabelecimento de Regional Innovation Engines, ou seja, de motores de desenvolvimento regional impelido pela inovação (a USP participa da construção de proposta em elaboração por uma universidade de lá).

Esse movimento, que passa a ser conhecido como “segunda revolução acadêmica”, espraia-se globalmente. O marco referencial em nosso meio é a criação pelo CNPq, em 1984, do pioneiro Programa Brasileiro de Parques Tecnológicos. Os seus desdobramentos levam a casos notáveis de desenvolvimento regional e locais fundamentados em inovação e tracionados por universidades, como Florianópolis, Recife e São Carlos.

Para desempenhar esse papel empreendedor, que desejavelmente se articula com as funções preexistentes, as universidades se tornam mais “porosas”, forjando relações mutuamente proveitosas com outros segmentos da sociedade, tais como o meio empresarial, o chamado terceiro setor e o estamento governamental. Essas relações, que inicialmente são esparsas, vêm se adensando neste século. Deixam assim de ser atividades complementares e passam gradualmente a se tornar um dos direcionadores da atuação de universidades. Para estar à altura das expectativas, elas passam a dedicar esforços para se destacar na “terceira missão”, expressão que reforça a necessidade estratégica da porosidade. A intensidade e efetividade passam a ser observadas e medidas, alimentando processos de avaliação feitos por financiadores e entidades produtoras de rankings universitários. Em pouco tempo, o desempenho nessa terceira missão passa a ser fator relevante de atratividade de uma universidade, em especial quando pretende ser reconhecida como uma “universidade de impacto”.

Ao se tornarem cada vez mais integrantes plenos da dinâmica das sociedades, as universidades se deparam com questões complexas, fruto da condição de interdependência. Algumas são materiais, como a contraposição entre a desejável autonomia da agenda acadêmica de pesquisa e a necessidade de captação de recursos financeiros para poder realizá-la. Outras são de natureza valorativa, como o envolvimento ou não em temas controversos de política pública.

Uma questão delicada é a participação na arena política. Com presença global, as universidades operam em regimes diversos – repúblicas e monarquias, democracias e absolutismos de diversos matizes. De forma indireta, as universidades participam pela formação que dão às novas gerações e pelas ideias que seus docentes geram, mormente os assim chamados “intelectuais públicos”. E manifestações estudantis fazem parte da história das universidades. Por outro lado, as universidades são vítimas das circunstâncias políticas, como atestam os lamentáveis expurgos acadêmicos que tanto afetaram a USP e que continuam sendo praticados em alguns países. No limite, a universidade inteira é expelida, como testemunha a cessação forçada das atividades da Central European University em Budapeste e sua transferência em 2018 para Viena.

Mas e o envolvimento direto da universidade como instituição nos embates políticos? A posição clássica é de neutralidade, ressalvado o desejável interesse acadêmico como objeto de estudo. A posição oposta é o envolvimento institucional aberto em campanhas eleitorais. A visão equilibrada sugere um posicionamento pelo qual a universidade não tem partido, mas tem lado. Essa visão norteou a contundente nota da Reitoria da USP publicada no fatídico 8 de janeiro, que este servidor subscreveu juntamente com seus colegas dirigentes da Universidade. E, animou também o inclusivo ato público da USP em defesa da democracia, realizado em sua unidade mais antiga, a Faculdade de Direito, seguindo longa tradição nesse campo.

No ambiente politicamente supercarregado que se amplia e estende, cabe delinear uma estratégia abrangente para proteger não apenas os prédios simbólicos das capitais (Washington, Brasília e outras), mas a própria democracia, especialmente quando ela é jovem. Uma das formas é desenvolver sociedades mais robustas, capazes de solucionar efetivamente os seus problemas críticos. Agora mais porosas, as universidades têm conhecimentos e comunidades vigorosas de docentes, estudantes e servidores, capacitando-as a participar ainda mais ativamente dessa construção, em natural parceria com outras instituições.

Democracia, sempre!

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