Um outro olhar sobre a reserva de vagas para docentes pretos, pardos e indígenas

Por Gislene Aparecida dos Santos, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 02/06/2023 - Publicado há 11 meses

O tema da reserva de vagas ganhou a mídia e as discussões na comunidade acadêmica após a decisão do Conselho Universitário (CO), em 22 de maio de 2023. O CO optou por aprovar uma medida “menos agressiva para não colocar em risco a qualidade da Universidade”. Apenas em editais com mais de três vagas, seria aplicada reserva de 20% para PPI.

Embora alguns estejam considerando essa medida um avanço, de fato, ela pode ser ineficaz já que não há (ou são raríssimos) concursos nos quais haja mais de uma única vaga para docente. E a opção aprovada pelo CO em casos nos quais haja menos de três vagas é a bonificação com um indicador de acréscimo de pontos que somente será significativo se candidatas/candidatos já tiverem uma pontuação muito próxima entre si.

Chama a atenção, em toda a argumentação que tem sido feita, a recorrente avaliação da suposta incompetência acadêmica de pessoas pretas, pardas e indígenas que não teriam mérito suficiente para adentrar a vida acadêmica de uma universidade como a USP. Mas não se discute o modo como os concursos de ingresso e de progressão na carreira (ou a vida acadêmica de modo mais amplo) é realizado. É como se as avaliações feitas nos concursos fossem totalmente isentas e neutras de modo que sempre fossem escolhidos os melhores, sem qualquer interferência de outra ordem.

Há estudos na área de neurociência que apontam para a existência de vieses em todos os processos de escolhas e julgamentos que fazemos. As escolhas não são neutras ou isentas. Então, como assegurar que a ausência de pretos, pardos e indígenas nas universidades seja decorrente de falta de mérito e não em razão dos vieses que orientam as seleções nas universidades?

Essa discussão nunca foi feita. Nunca se submeteu docentes da USP, por exemplo, a testes criados pela Harvard (sempre nossa referência) para verificar quais os vieses que possuem.

Se a comunidade uspiana fosse testada por meio dos conhecimentos tão respeitados da neurociência, seríamos considerados qualificados para avaliar a competência de pessoas pretas, pardas e indígenas, sem vieses? Se a comunidade uspiana fosse avaliada, a partir das pesquisas que mensuram a presença de preconceito em referência a grupos socialmente estigmatizados, seríamos aprovados com louvor revelando nossa total isenção em referência a esses grupos? De que modo vieses, se existirem, e a neurociência revela que existem, podem operar nas bancas de ingresso de docentes, nas bancas de progressão na carreira, nas designações ao longo da carreira acadêmica?

Não sabemos como e se os preconceitos dispersos no imaginário social, segundo os quais pessoas negras e indígenas valem menos, sabem menos, estão presentes dentro da USP. Não temos qualquer evidência de que pessoas pretas, pardas e indígenas não estejam sendo, sistematicamente, prejudicadas em razão dos vieses que há em relação a elas.

Ora, vejamos, em um concurso para ingresso na vida acadêmica uspiana tal como é hoje, as congregações decidem, por voto, os membros que comporão as bancas de avaliação. Obviamente, para que concursos não sejam invalidados, seguem-se regras para evitar conflitos de interesse e para que somente pessoas qualificadas (com títulos na área do concurso) componham as bancas. Em uma lista de docentes pode haver pessoas que tenham as mesmas qualificações. Então, a partir de quais critérios se escolhe e se vota na pessoa x, w ou z?

O mesmo pode ocorrer no momento da seleção de docente para ingresso na carreira. O que determina a seleção de alguém quando são candidatos e candidatas com o mesmo nível de qualificação? Como se mensura a aprovação ou reprovação de alguém em um concurso? Será que alguém que cita autores que eu conheço e aprecio, tem parceria acadêmica com pessoas que eu respeito, frequenta os espaços, congressos, instituições que eu admiro não conquistaria mais apreço de minha parte do que alguém que não frequentasse os mesmos lugares ou não tivesse perfil similar ao meu?

Cito dois casos que ilustram o contexto da realização de concursos e indicações para composição de bancas.

Uma pessoa negra (não quero expor nomes) levou 14 anos, após ter sido aprovada como livre-docente, para ter o direito de presidir uma banca nesse nível da carreira (banca de concurso para livre-docente). Nunca alcançava o número suficiente de indicações (votos) para sair da posição de suplência. Será que nas disputas internas, nas congregações, entre quem faz parte do colegiado, as amizades e afinidades não impactaram nas votações?

Outro exemplo revoltou um colega convidado a participar de uma banca de ingresso de docente. Ao longo do processo, ficou evidente que o departamento já sabia quem queria aprovar. As regras foram seguidas no limite no qual poderiam ser torcidas para aprovar quem desejavam aprovar. O argumento, revelado ao longo do certame, foi que não queriam uma das pessoas inscritas (apesar das inúmeras qualificações) porque era “muito problemática”. Então, um critério subjetivo “ser problemático” eliminou uma pessoa qualificada da concorrência ao se torcer as regras no limite em que poderiam ser torcidas sem que fossem quebradas.

Ou seja, mesmo obedecendo a todas as normas, é totalmente possível que as bancas e os processos acadêmicos funcionem de modo a favorecer pessoas que tenham mais afinidades com quem as avalia, mesmo que isso seja totalmente inconsciente.

Desafio a USP a testar sua comunidade em um grande estudo sobre vieses implícitos para responder se há ou não há vieses que orientam as decisões e os julgamentos realizados e que podem impactar negativamente pessoas socialmente marcadas como incompetentes. Se há vieses, somente políticas agressivas com reservas de vagas serão eficientes para ampliar o aumento de PPI e reduzir a desigualdade existente, hoje, na Universidade de São Paulo.

Na USP de 2023, deixe falar a neurociência, tão valorizada em nossa comunidade, e quem não tiver pecado, quero dizer, viés, após testes que comprovem isso, que atire a primeira pedra sob a forma da argumentação de que pessoas pretas, pardas e indígenas não têm mérito acadêmico e podem colocar em risco a qualidade da tão prestigiada Universidade de São Paulo.

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