Chile 2023: em busca de uma nova Constituição

Por Ester Gammardella Rizzi, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 21/12/2022 - Publicado há 1 ano

Las fuerzas políticas que suscriben el presente acuerdo lo hacen desde la convicción de que es indispensable habilitar un proceso constituyente y tener una nueva Constitución para Chile.” Assim começa o texto do acordo assinado por representantes de partidos e movimentos políticos chilenos em 12 de dezembro de 2022.

É indispensável ter uma nova Constituição para o Chile, afirma o documento construído após meses de debate. Mas não aquela Constituição elaborada entre julho de 2021 e junho de 2022 pela Convenção Constitucional chilena, em processo desencadeado em dezembro de 2019, após o estallido social. Apesar da convicção firme de que a Constituição Chilena de 1980 – também conhecida como “Constituição do Pinochet” – não pode persistir valendo, 62% dos chilenos votaram “rechazo” no dia 4 de setembro de 2022 e rejeitaram o potencial novo texto constitucional elaborado pelos 154 constituintes eleitos.

Se o “plebiscito de saída” teve como resposta majoritária o rechazo, o contexto político tem que lidar com o “plebiscito de entrada” que claramente indicou que os chilenos desejavam uma nova Constituição para ordenar o país. Em 25 de outubro de 2020, para a pergunta “¿Quiere usted una Nueva Constitución?“, 78% dos eleitores chilenos responderam “Apruebo” e apenas 22% responderam “Rechazo”.

Essas duas consultas populares separadas por quase dois anos (outubro de 2020 e setembro de 2022) colocaram o sistema político chileno em uma encruzilhada, desde o dia seguinte do plebiscito que rejeitou a proposta 2021-22 de nova Constituição. O que fazer com o desejo de uma nova Constituição frente à rejeição do novo texto efetivamente proposto? O acordo do dia 12 de dezembro é uma tentativa de solução: o início de um novo processo constituinte, a partir de procedimentos e instâncias diferentes daquelas de 2021-22.

Um primeiro ponto que chama a atenção no documento divulgado no último dia 12 de dezembro é que ele tem início com 12 pontos denominados “bases constitucionais”. São tentativas de limites materiais ao processo constituinte. Pontos de honra políticos que, em tese, não poderão ser modificados pelos futuros constituintes. Do ponto de vista teórico, é um poder constituinte bastante limitado pelo poder constituído anterior. Esses limites impostos desde antes e desde fora costumam entrar em tensão com o poder constituinte competente para gerar uma nova Constituição. A observar como o documento se relacionará com as instâncias que efetivamente serão instituídas a partir de janeiro de 2023.

Entre os 12 pontos, estão temas que organizaram parte do debate do plebiscito do dia 4 de setembro. O novo processo constituinte se compromete a manter um Poder Legislativo nacional com duas câmaras – Senado e Câmara dos Deputados no item 7. A proposta de nova Constituição 2021-22 tinha como proposta a extinção do Senado e a criação de uma Câmara de Regiões, com atribuições específicas. Além disso, na Defesa e Segurança Pública as “bases constitucionais”, item 10, se comprometem a manter Forças Armadas e Forças da Ordem e Segurança, com menção expressa aos Carabineros de Chile y Policía de Investigaciones. Não havia menção explícita na proposta de Constituição de 2021-22, o que abria caminho para uma reforma institucional. Por fim, no item 5 das bases constitucionais, lê-se: “Chile es un Estado social y Democrático de Derecho (…) y que promueve el desarrollo progresivo de los derechos sociales, con sujeción al principio de responsabilidad fiscal; y a través de instituciones estatales y privadas”.

Por um lado, a reafirmação – muito diferente do estabelecido na atual Constituição chilena de 1980 – de que o Chile é (passará a ser) um Estado Social. Por outro lado, o desenvolvimento progressivo dos direitos sociais lado a lado com a responsabilidade fiscal e a participação de instituições privadas para garantir direitos aponta para um certo caminho do meio entre o neoliberalismo vigente, com ampla participação (e lucro) de empresas privadas na oferta do que deveriam ser direitos sociais, e um estado de bem-estar social mais pleno, com ampla responsabilidade do Estado na garantia dos direitos.

Além das limitações de conteúdo dos 12 pontos que compõem as “bases constitucionais”, o documento Acordo por Chile para o novo processo constituinte ainda apresenta um intrincado “itinerário constitucional”, com desenho institucional complexo. Serão duas comissões com funções distintas, que ainda poderão compor uma terceira comissão mista responsável por dirimir dúvidas e impasses políticos das outras instâncias.

Em primeiro lugar será constituída uma “Comissão de Especialistas”, com 24 membros indicados metade pelo Senado e metade pela Câmara atualmente em exercício no Chile. Essa comissão é responsável por escrever um esboço de nova Constituição, um “borrador”. Em seguida (ou ainda paralelamente, não está totalmente claro o cronograma), será constituído um “Conselho Constitucional eleito” (a previsão é que as eleições ocorram em abril de 2023), que será composta de 50 membros (paritária entre homens e mulheres e com representação indígena). Esse Conselho Constitucional será responsável por avaliar e decidir sobre o esboço preparado anteriormente pelos especialistas. Por fim, caso alguns temas não alcancem determinados quóruns, o tema poderá ser levado para uma comissão mista, composta de 12 membros das duas outras instâncias constituídas (a de especialistas e o conselho eleito). Por fim, o texto terá que passar por um “Comitê Técnico de Admissibilidade”, que contará com 14 pessoas responsáveis por fazer a revisão técnica final do texto.

Para entrar em vigor, o texto aprovado nas quatro instâncias será submetido a um plebiscito ratificatório com voto obrigatório. É a única parte semelhante ao processo constituinte de 2021-22. Segundo o calendário do documento, esse plebiscito deverá acontecer em novembro de 2023. Esse complexo desenho institucional de quatro instâncias decisórias aliado às restrições políticas dos 12 pontos das chamadas “bases constitucionais” prometem deixar o caminho do Chile até uma nova Constituição bastante difícil. Seja como for, o processo deixa de ter como adjetivo caracterizador principal o “democrático” para passar a ter o “profissional”. Acompanharemos com atenção aqui do Brasil como será este experimento institucional constituinte e que texto ele será capaz de produzir.


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