Madame de Pompadour e a “Encyclopédie”

Marisa Midori Deaecto é Professora de História do Livro na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP

 02/01/2018 - Publicado há 6 anos
Marisa Midori Deaecto – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Dentre as damas da Corte dos “luíses”, nenhuma brilhou mais do que a marquesa de Pompadour. Jeanne-Antoinette Le Normant d’Étioles (1721-1764) nasceu em um ambiente burguês e mundano de Paris. Fez os primeiros estudos no convento das irmãs ursulinas, mas foi na “cidade luz” que completou sua formação, onde frequentou os mesmos salões dos filósofos, dedicou-se à dança, à música e ao teatro. Casou-se aos 19 anos com Charles-Guillaume Lenormand, tornando-se, então, madame d’Etioles.

O primeiro encontro com Luís XV se deu um ano após o casamento e ocupou muitas páginas das crônicas da vida cortesã. Teria acontecido em um baile de máscaras, no luxuoso ambiente palaciano, numas dessas noites memoráveis ofertadas pelo rei. Porém, a escolha de uma maîtresse de origem burguesa era uma novidade no reino e não se dera sem dificuldades. Urgia obter um título de nobreza para a jovem, introduzi-la nos rituais e nas regras de etiqueta, adequar sua toilette ao ambiente de Versalhes para, enfim, torná-la pública perante a Corte. Agora, como marquesa de Pompadour.

A partir de então, sua figura se projetou sobre uma nobreza tão pálida quanto a figura de um monarca que parecia viver à sombra de seu avô, Luís XIV, o rei Sol. As questões de Estado, as contendas diplomáticas, o enfraquecimento do erário, o esmaecimento de sua imagem diante do povo, nada disso parecia demover o jovem rei de sua vida boêmia e pouco afeita à política. A jovem rainha, de origem polonesa, não se mostrava menos indiferente às suas funções. Para todas as questões e contendas sua “favorita”, a marquesa, logo, madame de Pompadour, mostrava notável interesse e desenvoltura. Não demorava a fazer fama no reino de França e por toda a Europa. As repúblicas das letras foram particularmente sensíveis aos seus talentos. E é nesse ponto que sua personalidade nos interessa.

O gosto das artes

Amiga das letras e das artes, madame de Pompadour animava as soirées de Versalhes com suas performances – consta que atuava e cantava muito bem! – e com a agudeza de seu espírito.

Ao ser favorecida pelo erário régio com uma renda anual imodesta, passou a investir em propriedades e a contratar engenheiros, arquitetos e artistas talentosos, que logo alçavam sua fama nos meios aristocráticos e burgueses do reino. Entre suas propriedades, destacaram-se os castelos de Crécy, de La Celle-Saint-Cloud, de Ménars, o Hôtel d’Evreux, atual palais de l’Elysée, em Paris, além de suas instalações em Versalhes.

Os artistas a veneravam.

Madame de Pompadour se fez retratar pelos maiores talentos da época: Nattier Jean-Marc a imortalizou em Diana caçadora; Carle Vanloo, talvez o mais imaginativo, a fez representar como camponesa e sultana; François-Hubert Drouais retratou uma Pompadour mais madura, ocupada com seus bordados; Maurice Quentin Delatour e François Boucher, por seu turno, foram os artistas mais constantes, responsáveis por perenizar a imagem de uma dama refinada, sensual e inteligente, bem ao gosto da ilustração francesa. Embora Boucher tenha sido particularmente hostilizado por Diderot. Em “Le système du dégoût. Diderot critique de Boucher”, Colas Duflo demonstra como a crítica ao artista acompanha o próprio desenvolvimento do filósofo como ensaísta, téorico e crítico de arte, a partir dos anos de 1750[1]. É como se o artista “favorito”, da dama “favorita” do rei, como ficou conhecido, servisse ao pensador como antítese de tudo o que ele concebia como o belo e o bom gosto em matéria de estética. Ao contrário, Maurice-Quentin Delatour caiu no gosto dos enciclopedistas e imortalizou alguns deles. Inclusive, suas obras.

A marquesa das Luzes

O retrato monumental de Delatour, de 1,77 m de altura, por 1,33 m de largura, foi executado em pastel e guache. Apresenta-se hoje como um dos chef-d’œuvres do Museu do Louvre. Nele, a elegância da “favorita” do rei se manifesta no luxuoso vestido de cores pálidas, em ouro e azul, tudo em harmonia com o azul indefinido de seus olhos, a mesma cor, aliás, que predomina em diferentes tons no ambiente que a cerca. Nada é excessivo no décor. A jovem Pompadour não ostenta nem joias, nem um penteado extravagante. Amante das artes, das letras e das ciências, ela se deixa representar cercada por objetos que reafirmam sua finesse, mas também o trato de seu espírito.

A música é evocada pela partitura que ela sustenta entre as mãos e uma guitarra barroca que descansa sobre o canapé. O globo terrestre evoca seu interesse pelas ciências. Folhas soltas de um tratado de gravura e um caderno de desenho lembram sua dedicação a esta arte. E os livros, objeto maior de nosso interesse, fazem prova inconteste de seu papel como defensora das Luzes – não raro, contra os interesses do rei – e de seu espírito emancipador em meio a uma Corte em decadência. Os volumes aparecem dispostos na escrivaninha, sobre a qual ela se apoia. O primeiro, Pastor Fido, consiste na obra tragicômica de Guarini. Na sequencia, vemos a Henriade, de Voltaire e L’Esprit des Lois, de Montesquieu, este último, condenado pela censura francesa em 1749 e arrolado no Index em 1751, ou seja, apenas alguns anos antes da execução da pintura. E, como se não bastassem esses primeiros títulos, vemos, em seguida, o volume IV, in-folio, da Encyclopédie de Diderot e D’Alembert. Uma pequena biblioteca, enfim, que testemunha de modo eloquente o parti pris de nossa personagem em um mundo em ebulição[2].

Sabemos que a edição da Encyclopédie representou para o seu tempo uma aventura editorial de grande envergadura, o que se expressa em termos de tiragem, do projeto intelectual que ela comportou e a maneira como seu aparecimento não apenas ousou driblar os mecanismos censores, mas os colocou em xeque. O primeiro ataque se deu em fevereiro de 1752, logo após a publicação do primeiro volume. O livro fora acusado de conter máximas que “tendiam a destruir a autoridade do rei, a elevar os fundamentos do erro, da corrupção dos valores, da irreligião e da incredulidade”. Era, portanto, necessário suprimi-lo.

A esse primeiro de muitos outros ataques, os republicanos das letras responderam com agilidade e firmeza, contando com o apoio de aristocratas e burgueses esclarecidos, que certamente atuaram como subscritores dessa empreitada editorial. Malesherbes, então diretor do órgão de censura do rei, e madame de Pompadour agiram, cada um à sua maneira, em favor do projeto[3]. O tomo IV que a grande dama ostenta em seu boudoir saiu em 1754, ou seja, em meio às disputas legais que faziam periclitar o programa filosófico desde suas origens. A pintura se apresenta, nesse sentido, como um ato político extremamente audacioso da mais recente eleita do rei.

A marquesa foi uma exímia representante do século das Luzes. Faleceu jovem, em 1764, tomada por uma tuberculose, nas dependências do palácio de Versalhes. Jovem demais para compreender que os projetos intelectuais por ela defendidos custaram à sua velha França mudanças profundas e irreversíveis.

 

[1] Colas Duflo, « Le système du dégoût. Diderot critique de Boucher », Recherches sur Diderot et sur l’Encyclopédie [En ligne], 29 | 2000, mis en ligne le 18 juin 2006, consulté le 26 décembre 2017. URL: http://journals.openedition.org/rde/88 ; DOI : 10.4000/rde.88

[2] http://focus.louvre.fr/fr/la-marquise-de-pompadour/observer/une-femme-desprit

[3] Um inventário completo da aventura da Encyclopédie, bem como a bibliografia sobre o tema pode ser consultado em http://enccre.academie-sciences.fr/encyclopedie .

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