É sábado, hora do almoço e uma fila gigante se forma em frente à entrada do restaurante universitário da USP, em São Carlos: as camisetas brancas com mangas cor-de-rosa distinguem as meninas e mulheres que ali estão dos frequentadores rotineiros do local. Quem são elas? 162 garotas de 10 a 18 anos, 80% estudantes de escolas públicas da região.
A maioria vive a experiência de entrar pela primeira vez em uma universidade pública. A professora Kalinka Castelo Branco não esconde a satisfação que sente por ter acompanhado essa aventura. “Agora, elas sentem que esse espaço também é delas.”
Durante cinco sábados, as garotas participaram das atividades de uma escola de verão que ensinou a desenvolver aplicativos, a Technovation Summer School for Girls, realizada pelo Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP.
A escola já acabou, mas mais um evento para mulheres tem data marcada: dia 24 de agosto, das 14 às 17 horas. É quando acontecerá o evento Mude o Jogo no ICMC, em que a meta é levar as garotas a compreenderem que o mundo dos jogos eletrônicos é outro espaço que elas podem e devem ocupar. Voltado a participantes do gênero feminino, de 15 a 21 anos, o evento vai explicar como desenvolver um jogo para celular e submeter a proposta ao desafio internacional do Google Change the Game.
Empoderar para mudar
Nos cinco sábados da Technovation Summer School for Girls, as 162 garotas se dividiram em times para criar aplicativos que solucionassem problemas sociais. Formados por até cinco participantes, os grupos se dividiam em duas categorias: Sênior, para meninas de 15 a 18 anos; e Júnior, para meninas de 10 a 14 anos.
“A ideia não foi apenas trazê-las para conhecerem o mundo da tecnologia, mas empoderá-las. Elas puderam colocar a mão na massa: trabalharam na ideação do projeto, no desenvolvimento do aplicativo e na apresentação da proposta (pitch). As mais velhas até fizeram um plano de negócios”, explica a professora. Em cada uma dessas fases, receberam treinamentos específicos e puderam desenvolver habilidades sociais adicionais relacionadas ao trabalho em equipe e à arte de falar em público, por exemplo.
“Todas as palestras foram ministradas por mulheres que estão nesse meio, que é super restrito, e elas mostram os exemplos delas e dão apoio para a gente seguir e sempre querer aprender mais”, revela uma das participantes, Sarah Piedade de Oliveira, 16 anos. “Muitas ideias legais e funcionais criadas no evento têm grandes chances de virar realidade e, daqui a pouco, quem sabe, poderemos fazer download dos aplicativos dessas garotas”, diz Larisse Gois, gerente de tecnologia da Logicalis. Formada em Engenharia Elétrica pela Escola de Engenharia de São Carlos, ela foi uma das palestrantes do evento.
Quando a escola terminou, no dia 13 de abril, além da premiação aos melhores projetos, os grupos foram estimulados a inscreverem seus aplicativos no desafio global Technovation Challenge. As garotas que participaram do evento do ICMC conseguiram emplacar três projetos entre os semifinalistas: o aplicativo for-all-of-us (Sênior) e os aplicativos Pet Hero e SafU (ambos na categoria Júnior). Nos vídeos, elas explicam como esses aplicativos funcionam.
Desigualdade explícita
A Technovation Summer School for Girls está sob o guarda-chuva de um grande projeto chamado Ações no Ensino Fundamental e Médio: Inclusão Feminina no Ensino Superior de Ciências Exatas”, aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no final de 2018. Ao todo, a iniciativa tem à disposição, ao longo deste ano, R$ 95 mil para desenvolver diversas atividades. O Mude o Jogo será a próxima e haverá ainda, no dia 19 de outubro, o Ada Lovelace Day.
“Analisando o número de ingressantes do sexo feminino nos cursos de ciências exatas e da terra nas três maiores universidades públicas paulistas (USP, Unesp e Unicamp), observamos uma grande disparidade entre o número de homens e mulheres, reforçando o estigma de ser uma área majoritariamente masculina, o que vai ao encontro de diversos resultados de pesquisas publicados recentemente”, escreve a professora Kalinka no projeto.
Enquanto o número de cursos de computação cresceu 586% nos últimos 24 anos no Brasil, o porcentual de mulheres matriculadas nesses cursos caiu de 34,8% para 15,5%, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).
Considerando-se os profissionais atuantes na área em 2014, apenas 20% são do gênero feminino segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já o CNPq fez um levantamento em 2016 mostrando que mais de 80% dos mestres e doutores em computação no nosso país são do gênero masculino.
Esses números estão em sintonia com os apresentados no artigo “Uma análise de gênero a partir dos dados da Sociedade Brasileira de Computação“: 78,13% das pessoas associadas à instituição são do gênero masculino e 21,87% do feminino. O estudo foi publicado nos anais da 13ª edição do workshop Women in Information Technology (WIT), realizado em Belém, dias 15 e 16 de julho, como parte do 39º Congresso da Sociedade Brasileira de Computação.
Na ocasião, o WIT premiou como melhor artigo o trabalho “Gênero e suas nuances no ENEM“, de autoria da doutoranda Viviana Noguera e das professoras Cristina Ciferri e Kalinka, todas do ICMC. Em busca de explicar as múltiplas causas do decréscimo da participação das mulheres nas ciências exatas, elas decidiram analisar o desempenho dos participantes no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) ao longo de cinco anos (de 2013 a 2017).
Desconstruindo muros
Não é à toa que parte dos R$ 95 mil fornecidos pelo CNPq para o projeto está sendo investida em bolsas para estudantes e também professoras de cinco escolas estaduais de São Carlos. “São escolas públicas de diferentes regiões da cidade, tanto de áreas centrais quanto periféricas, com diferentes realidades tanto em relação à infraestrutura quanto ao perfil do público atendido”, ressalta Kalinka.
Três estudantes de cada escola recebem uma bolsa de pré-iniciação científica no valor mensal de R$ 100 e as escolas têm um professor tutor, que é o responsável por coordenar as atividades do projeto e recebe uma bolsa de R$ 400. Esse grupo, composto de 15 estudantes e cinco professoras, está participando, desde março, de um curso sobre programação usando a linguagem Python e o objetivo é que se tornem replicadoras desse conteúdo em suas respectivas escolas para ampliar o impacto da iniciativa.
No sábado, 10 de agosto, essa turma se uniu a 12 garotas e quatro professoras de mais quatro escolas públicas da cidade para iniciarem outro curso: dessa vez, o tema é robótica. É o início de um novo capítulo do projeto criado pela professora Kalinka, que se tornou possível por meio de uma parceria estabelecida com o professor José Marcos Alves, da Escola de Engenharia de São Carlos. Coordenador do Centro de Inclusão Social USP São Carlos (CIS), o professor contou com o apoio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Sistemas Autônomos Cooperativos (InSAC) para estender a iniciativa às quatro escolas e fornecer bolsas a mais garotas.
Matemática em campo
Outra parceria que ampliou o escopo de atuação do projeto foi estabelecida com a professora Ires Dias, do ICMC. Ela acompanha, há 14 anos, a trajetória de estudantes da região premiados na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) e coordena uma das regionais do Estado de São Paulo do programa OBMEP na Escola, que tem como objetivo contribuir para a formação de professores em matemática, estimulando estudos mais aprofundados e a adoção de novas práticas em sala de aula.
A partir da colaboração com Kalinka, Ires passou a abarcar mais uma escola pública da cidade na iniciativa, a Conde do Pinhal, onde duas professoras trabalham com 52 alunos na resolução de problemas matemáticos. Outros 90 alunos são atendidos por três professoras e um professor nas escolas Esterina Placco e Ary Pinto das Neves. “Nossa preocupação é atrair mais meninas para o programa, sem deixar de fora os meninos que querem aprender mais matemática”, conta Ires.
A OBMEP fornece uma bolsa de R$ 756 para cada professor e também o material que usarão em sala de aula. Mensalmente, Ires se encontra com o grupo para orientá-los no que for preciso. Ela também coordena o Programa de Iniciação Científica Jr. (PIC) na região, que oferece bolsas de R$ 100 mensais para os medalhistas da OBMEP se dedicarem aos estudos. Quem mora em São Carlos tem a oportunidade de participar de encontros presenciais, que são realizados aos sábados, no ICMC; já quem mora em outras cidades realiza as atividades por meio de uma plataforma on-line. Não são poucos os jovens medalhistas que têm o primeiro contato com uma universidade pública por meio do PIC: “Acendemos uma luz em toda escola em que há um medalhista da OBMEP chamado para participar do programa”.
Adaptado de Denise Casatti, Assessoria de Comunicação do ICMC – Leia o texto original