Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Produção científica na USP é marcada por desigualdade de gênero, aponta estudo
Levantamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto mostra que o porcentual de contratações e diferença de impacto da produção científica entre os gêneros se mantiveram desiguais nos últimos 30 anos
Estudo de pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP com uma amostra de mais de três mil docentes da Universidade mostra que a produção científica na USP está sujeita a um viés de gênero. O gênero masculino é a maioria, correspondendo a dois terços do corpo docente, padrão perpetuado pelas contratações das últimas décadas.
O estudo, realizado com 3.067 docentes da USP – 36,8% do total -, mostrou que 61,7% eram professores e 38,28%, professoras. O gênero masculino também apresentou índices maiores de publicações, de citações por ano, de produtividade e de impacto científico. Tendo como base os artigos mais citados (medidos pelo índice H), entre as 100 pessoas com maior índice H (≥ 37), 83% eram do gênero masculino. O índice H representa o número de artigos de um pesquisador que foram citados um número igual ou maior de vezes em outros trabalhos. Outro destaque da pesquisa foi quanto ao total de mulheres em posição de prestígio, que ficou em 13%.
Os dados evidenciam que, de maneira geral, “os pesquisadores masculinos tendem a obter maior impacto na sua produção”, avalia o professor João Paulo Souza, da FMRP, orientador do estudo e um dos autores do artigo Sexismo científico: o viés de gênero na produção científica da Universidade de São Paulo, publicado em outubro na Revista de Saúde Pública da USP.
A desigualdade de gênero na produção científica é denominada sexismo científico. A palavra sexismo refere-se a qualquer expressão, atitude, palavra ou gesto baseado no pressuposto de que “algumas pessoas são inferiores a outras devido ao seu sexo”, explica Lívia Oliveira-Ciabati, pesquisadora da FMRP e uma das responsáveis pelo estudo, que é parte do seu doutorado.
No campo científico, o sexismo está atrelado ao surgimento da ciência moderna, que, segundo a pesquisadora, nasceu num contexto cultural em que a mulher era vista de forma diferente do homem, quando um grupo específico de homens brancos de classe social abastada definiu o que era a ciência e associou os homens à razão e as mulheres à emoção. Essa definição criou uma “barreira intelectual intransponível para as mulheres da época”, cerceadas que foram de participar do desenvolvimento da ciência, por não serem detentoras de razão.
João Paulo Souza – Foto: LinkedIn
Essa realidade ainda hoje não foi superada, segundo Lívia, visto que “a desigualdade de gênero dentro da ciência, com a prevalência masculina, é fruto de fatores socioeconômicos, socioculturais e também do preconceito e crenças de que cada gênero deve atuar de uma determinada maneira dentro da nossa sociedade”, afirma.
Na USP, a realidade se repete, conforme a pesquisadora, já que o número de mulheres com cargo docente chegou a cerca de 40%, porcentual mantido nos últimos 30 anos, evidenciando não ser “um reflexo só do tempo”, mas de um padrão que tem se repetido ao longo dos anos. Essa tendência explica a diferença de impacto na produção entre os gêneros que piora quando projetada no futuro, pois, “ao contrário do que se poderia esperar, vem aumentando”, aponta o professor Souza.
Ações sistêmicas e eficazes
Lívia Oliveira-Ciabati – Foto: CNPq
Além de comprovar a desigualdade de gênero no campo científico, os pesquisadores também avaliaram o tamanho dessa desigualdade e a perspectiva de redução ou mudança no padrão dessas métricas. Como resultado, verificaram que, apesar das ações para alcançar a igualdade de gênero, a USP não deve superar a desigualdade na produção científica sem uma “ação afirmativa substancial”, destaca Souza. Segundo ele, a superação das desigualdades não acontece por acaso, mas por meio de “escolhas afirmativas, decisivas e de longo prazo”.
Aspecto defendido também por Lívia, uma vez que se trata de desigualdades perpetuadas por décadas. “Não vão ser superadas por algumas ações curtas e pontuais”, mas com “ações sistêmicas, ações que sejam eficazes”, diz, lembrando que são ações necessárias para que a Universidade alcance “esse objetivo ainda nessa geração de pesquisadores”.
Lívia acredita que ainda dá tempo de diminuir essa desigualdade, e até acabar com ela, se houver interesse e movimentos nessa direção. Para ela, a superação de desigualdades “é uma escolha”. “Se a USP quer ser vitrine, se a gente quer dar o exemplo, se a gente quer realmente ensinar como a gente pode melhorar, ainda dá tempo de auxiliar essas mulheres a vencerem todas essas dificuldades estruturais. E, para isso, eu acredito muito na USP”, diz.
Para o professor Souza, o artigo que publicaram representa “um chamado” para que acadêmicos e a Universidade adotem ações que eliminem as desigualdades de gênero no campo científico. Como próximo passo, ele defende que a Universidade desenvolva alternativas para combater essas desigualdades a partir de um pensamento crítico.
Algoritmo on-line analisa sexismo científico
A pesquisa foi realizada a partir de informações disponíveis em bancos de dados on-line com publicações dos docentes, como o Data USP, Publons e Web of Science. Como no Brasil há legislação que protege os dados dos cidadãos, tal qual a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), não foi possível achar no portal da transparência a variável de gênero, levando os pesquisadores a buscar uma base oferecida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que relaciona nomes brasileiros com a frequência deles segundo seu gênero.
Lívia conta que a equipe coletou os dados, organizou e criou a própria base de avaliação a partir de um algoritmo de coleta de dados autônoma, criado por eles. Esse recurso, informa a pesquisadora, está disponível on-line para que outros pesquisadores possam fazer o mesmo tipo de trabalho em outras universidades.
Em relação ao método de análise, todos os professores da USP foram, inicialmente, avaliados e separados apenas por gênero e tempo de serviço. Assim, verificaram os professores com mais de 10 e menos de 20 anos e aqueles com menos de 10 anos trabalhando na Universidade. Também foram avaliadas as métricas de citação, tanto por ano quanto por artigo, o índice H e a projeção de citações ao longo dos anos históricos que o Publons tinha registrado.
Integraram a equipe do estudo a doutoranda Lívia Oliveira-Ciabati, Luciane Loures Santos, Margaret Castro e João Paulo Souza, docentes da FMRP; Annie Schmaltz Hsiou, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP); e Ariane Morassi Sasso, pesquisadora na Universidade de Potsdam, na Alemanha.
Ouça no player abaixo entrevista dos pesquisadores ao Jornal da USP no Ar, Edição Regional.
Mais informações: e-mails: liviaciabati@gmail.com (Lívia) ou jp.souza@usp.br (professor João Paulo)
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