O Brasil recebe milhares de imigrantes todos os anos. Os que chamam mais a atenção dos noticiários são os refugiados, que saíram de seus países de forma forçada e vieram em direção ao Brasil. Na última década, devido aos conflitos e crises ao redor do mundo, o número de pessoas que deixam seus lares em busca de melhores condições de vida aumentou significativamente. Entre 2013 e 2022, a Polícia Federal do Brasil concedeu quase 1,2 milhão de registros de residência, um aumento significativo em comparação aos anos anteriores. Esses números refletem um fenômeno em crescimento que levanta discussões sobre a integração social e os direitos dos imigrantes.
Uma vez instalados no território brasileiro, os imigrantes passam a integrar a sociedade em suas diversas áreas. Nos últimos anos, o número de trabalhadores imigrantes foi ampliado em mais de duas vezes, passando de 90 mil trabalhadores registrados no mercado formal para mais de 200 mil. Uma parte considerável desse contingente acaba se alocando em São Paulo. Segundo os dados do Observatório das Migrações em São Paulo, de 2000 até 2024, foram registrados 690 mil imigrantes no Estado, desses, 455 mil foram na capital.
Imigração e xenofobia
Jameson Martins, doutor em saúde global e sustentabilidade pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, aponta que, historicamente, migrar é um movimento natural do ser humano. “Na verdade, eu diria que se trata provavelmente do fato social e histórico mais natural de que se tem notícia na humanidade. E, nesse sentido, claro que houve mudanças em relação à percepção sobre o fato, na percepção política em relação à fixação no território de determinadas populações e, a partir disso, o não reconhecimento do direito e dessa naturalidade a migrar.”
O professor aponta ainda que essa mudança de percepção em relação aos movimentos migratórios assumiu contornos extremistas na política recente. Para o docente, a imigração se tornou um fato utilizado por grupos políticos para “escamotear problemas internos”. “Há registros históricos desde a Antiguidade em relação ao que a gente chama de alteridade fabricada em relação ao outro. Um determinado grupo que se percebe coeso, mais ou menos homogêneo, pode muito bem observar o movimento de uma outra população que chega ou que passa pelo seu território como uma ameaça a essa suposta integridade e homogeneidade interna. Na nossa história recente, isso tem sido e certamente continuará sendo utilizado politicamente por grupos interessados em tornar essa ameaça, vamos dizer assim, algo importante a ser combatido. Muitas vezes para camuflar problemas que seriam uma contradição a essa ideia de homogeneidade interna’’, detalha.
Marcadores raciais
O povo brasileiro carrega a alcunha de ser uma população receptiva e hospitaleira. No entanto, conforme conta o especialista Jameson Martins, essa receptividade costuma ser seletiva. “A forma como o brasileiro enxerga o imigrante tem uma influência muito forte de marcadores sociais e raciais. Afinal, nós passamos a maior parte da história como país de economia escravocrata com uma abolição malfeita, então a gente tem uma sequela de elemento racial muito forte. A própria vinda de imigrantes da Itália ou da Alemanha foi, inclusive, na virada do século 19 para o 20, uma tentativa de embranquecimento da população. Então a recepção é diferente no caso dos haitianos e mesmo de outras populações de países africanos, como Congo, Senegal, Angola, Moçambique etc. Quando você tem populações não brancas, como agora, vindo para o País, você pode criar uma animosidade”
Observando a recepção do fluxo de imigrantes europeus em 2010, se percebe ainda mais essa diferença de tratamento. O Brasil teve um boom econômico, por exemplo, no fim dos anos 2010, que atraiu também um grupo considerável de expatriados, que é como costuma se chamar expatriados europeus e norte-americanos. Esse movimento foi visto com muito bons olhos. Quando o europeu ou norte-americano vem para o Brasil, pelo senso comum, deseja-se cultivar essa imagem de país que recebe bem as pessoas, que é aberto, que é misturado e, por isso mesmo, tem toda a razão de receber bem as pessoas. Mas essa benevolência muitas vezes não é atribuída a outras populações, particularmente pelo marcador de origem e de raça.
Direitos constitucionais
Do ponto de vista constitucional, no entanto, o Brasil tem a obrigação legal de dar o suporte necessário para que os imigrantes se estabeleçam em nosso território. Para entender bem como funciona o Direito Legal dos migrantes no Brasil conversamos com André de Carvalho Ramos, da Faculdade de Direito da USP e coordenador nacional do Grupo de Trabalho Migração e Refúgio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
“O Brasil se comprometeu internacionalmente com a Convenção de 1951 sobre Refugiados, também chamada de Convenção de Genebra. Do ponto de vista nacional, temos a Lei 9474 de 1997, que trata especificamente de refúgio. Além disso, existe a Lei de Migração, que regula a entrada e permanência de migrantes no País, como turistas, empresários ou estudantes, mas sem a intenção de permanecer no Brasil.”
Os serviços brasileiros são universais e atendem a todas as pessoas, inclusive os imigrantes indocumentados. “São pessoas que vêm para o Brasil por questões, muitas vezes, de sobrevivência. Os chamados migrantes indocumentados econômicos, por exemplo, é normal que eles não tenham essa regularização migratória. Entretanto, a lei de migração tem uma série de direitos que abarcam qualquer tipo de migrante. O nosso Serviço Único de Saúde, por exemplo, é universal, a pandemia mostrou a importância disso. O SUS, então, oferece o direito à saúde a todas e todos, inclusive ao migrante indocumentado”, explica.
O professor destaca a importância de um esforço institucional pela regularização de todos os imigrantes. “O primeiro passo para a garantia de direitos é a regularização migratória. É necessário que a presença do migrante seja totalmente regular no território brasileiro. Assim, se evita uma série de questões que podem ocorrer com eles devido a essa insegurança da indocumentação: a ação de coiotes, de contrabando de migrantes, tráfico de seres humanos e todas as outras formas de superexploração, exploração odiosa”, argumenta Ramos.
A chave da universalidade
Para o especialista Jameson Martins, os serviços universais funcionam de forma mais adequada para todos quando alcançam os mais fragilizados. “A política que consegue atingir os grupos mais marginalizados beneficia a todos. Ela dá perenidade, consistência e coerência para o tratamento de todos, tanto para aqueles que já são vistos como merecedores daquele serviço, como aqueles que não. Ou seja, você está treinando equipes, você está oferecendo equipamentos, oferecendo toda a infraestrutura necessária para o bom trabalho das equipes de saúde, isso significa também melhorar para os brasileiros. Justamente na chave de que o sistema é universal”, finaliza Martins.
*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira
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