Mais informações: j.p.neirotti@aston.ac.uk, com Juan Pablo Neirotti, e ncaticha@usp.br, com Nestor Caticha
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
O deputado Bruno Araujo profere o 342º voto que garantiu a autorização do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, no plenário da Câmara dos Deputados, em 2016 – Foto: Marcelo Camargo para Agência Brasil – via wikimedia
Seguindo uma tendência de instabilidade política latino-americana, o Brasil teve quatro presidentes afastados do cargo por impeachment; dois deles, Carlos Luz e Café Filho, no mesmo ano de 1955. O fenômeno, embora nunca esgotado, é velho conhecido de cientistas sociais e economistas. Com o avanço das ciências computacionais, os movimentos pendulares da política também passaram a ser escrutinados pela mecânica estatística – ramo da física capaz de fazer uma ponte entre o comportamento de partículas microscópicas e os diferentes estados macroscópicos de sistemas complexos.
“A mecânica estatística explica o comportamento de sistemas compostos de um grande número de partes interativas, modelando essas interações e calculando quantidades que transmitem informações estatísticas. A modelagem eficaz requer a identificação de componentes capazes de explicar o comportamento emergente”, diz o físico Juan Pablo Neirotti, professor da Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas da Universidade de Aston, no Reino Unido.
Particularmente útil para a compreensão do comportamento de grupo, este ramo da Física pode ser adaptado para modelar sociedades, quando opiniões ou atitudes individuais se agregam em fenômenos coletivos. Entendendo as sociedades como redes neurais e os agentes de mudança social como vetores, Neirotti e o professor do Instituto de Física (IF) da USP Nestor Caticha utilizaram a mecânica estatística para entender os mecanismos de formação de opinião e de alianças no Congresso Nacional que levaram – ou não – o líder do executivo ao impeachment. O trabalho foi publicado na revista Physical Review e recebeu destaque dos editores do periódico.
“A probabilidade é a maneira matemática de lidar com as incertezas. E a mecânica estatística apresenta técnicas para encontrar as variáveis agregadas e depois analisar o comportamento. O interessante é que essas variáveis agregadas, que os físicos chamam de parâmetros de ordem, às vezes apresentam mudanças drásticas de comportamento”, afirma Caticha. Ele conta que a pesquisa teve o apoio do economista Glauco Peres da Silva, professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Com a parceria, foi possível selecionar votações de matérias substanciais para o índice de popularidade dos presidentes, desde a eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989, até o impedimento de Dilma Rousseff, em 2016.
No trabalho, os congressistas despontam como atores decisivos do processo político brasileiro. Representados como agentes de processamento de informações equipados com uma rede neural, os atores da Câmara legislativa emitem opiniões sobre questões na agenda presidencial que têm um custo para suas alianças políticas. O custo aumenta quando se discorda do presidente e pode ser ampliado quando há um congressista dissidente do grupo apoiador da decisão presidencial.
Estas flutuações foram apresentadas pela dupla de físicos por meio de diagramas de fases, com índices que mediram o apoio legislativo, a popularidade presidencial nas pesquisas e a relevância da agenda presidencial de cada período. Na análise, foram consideradas as trajetórias de Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
“A hipótese primária para interpretar o comportamento observado é que a Câmara legislativa do Brasil, com seu número relativamente grande de partidos políticos locais, opera em um estado que promove o diálogo. Nem o partido no poder nem o principal partido da oposição têm assentos suficientes para impor uma posição monolítica contra o executivo, necessitando de negociação e colaboração com outros partidos”, destaca Neirotti.
A pesquisa conseguiu ilustrar como o índice de aprovação pública e o alinhamento ideológico estratégico da Câmara legislativa com o presidente levaram a rebeliões legislativas constitucionais e impeachments.
De acordo com Neirotti, para índices de aprovação popular suficientemente baixos, a Câmara exibe duas fases distintas: a favor ou contra o presidente. No entanto, quando o índice de aprovação popular ultrapassa um certo valor crítico, surge uma terceira fase, onde ambas as posições coexistem. “Essa fase de coexistência representa melhor o estado atual da Câmara legislativa do Brasil, onde partidos menores dialogam com partidos maiores em lados opostos, influenciando o equilíbrio de apoio ao Executivo”, aponta.
Os pesquisadores explicam que, à medida que fatores externos trabalham para produzir uma pressão e influenciar o tamanho da agenda em discussão, o sistema evolui no diagrama de fases e pode cruzar os limites de fase para o regime de impeachment.
“Nos itens b [direita superior] e c [esquerda inferior], que correspondem às trajetórias de FHC e Lula, ambos permanecem dentro da fase de diálogo ao longo de seus mandatos, apesar de FHC enfrentar um momento particularmente precário em 1º/6/2001. Em contraste, Collor de Mello e Dilma Rousseff [painéis a e d] saíram da fase de coexistência e entraram em uma fase marcada por baixos índices de aprovação na Câmara. Ambos acabaram enfrentando o impeachment”, afirma Neirotti.
“O Collor cai, ele entra na parte branca do gráfico que é a região do ‘contra’. O Fernando Henrique bate na trave duas vezes; o Lula fica dentro [do espaço de coexistência, representado pela cor amarela] e do Bolsonaro só tínhamos dados parciais. Não coloquei [no artigo], mas ele também fica navegando nessa região, como o Lula e o FHC”, explica Caticha.
O professor da USP lembra que o comportamento coletivo não é simples de medir como os sistemas físicos, podendo levar a eventos inesperados. Apesar disso, ele afirma ser possível modelar a interação entre diversas partes interessadas de um sistema complexo, não apenas analisando conjunturas políticas estabelecidas, mas prevendo potenciais pontos de ruptura.
“Há uma tradição para a criação de modelos na sociologia. Agora, as redes neurais trazem um novo ingrediente de complexidade que permite descrever algumas situações de interesse no estudo de sociedades. É completo? Não é. É a última teoria? Não. O próximo passo é interagir com cientistas políticos para que eles possam aprender a usar essa ferramenta e tentar extrair dados mais precisos”, diz Caticha.
“Se tivéssemos confiado em modelos tradicionais, como spins [em que as partículas não interagem entre si], a fase de coexistência não teria sido identificada, e o poder explicativo do modelo teria sido perdido. Isso demonstra como a mecânica estatística não apenas ajuda a determinar as propriedades mínimas que os componentes do sistema devem possuir para explicar fenômenos observados, mas também identifica os parâmetros-chave que carregam poder descritivo”, conclui Neirotti.
O artigo Legislative rebellions and impeachments in a neural network society pode ser lido aqui.
Mais informações: j.p.neirotti@aston.ac.uk, com Juan Pablo Neirotti, e ncaticha@usp.br, com Nestor Caticha
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado