“Paquera”, “paqueramento” ou “paqueração”? Um breve olhar sobre deverbais

Por Henrique Braga, doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Marcelo Módolo, professor da FFLCH-USP

 Publicado: 29/11/2024 às 17:09
Henrique Braga – Foto: Arquivo pessoal
Marcelo Módolo – Foto: Arquivo pessoal
No princípio era o verbo, mas logo veio o substantivo. Assim poderia ser resumido o percurso pelo qual surgem substantivos deverbais. Trata-se de palavras como “monitoramento” ou “observação”, usadas para nomear ações, estados, processos, que, em outros contextos, podem ser expressos também por verbos (no exemplo, os termos são derivados de “monitorar” e “observar”, respectivamente).

Nas duas palavras citadas, ocorrem sufixos especializados em formar esse tipo de termo: “-mento” e “-ção”. São inúmeros os exemplos de verbos que, com o acréscimo de uma dessas pecinhas morfológicas, resultam em substantivos, vocábulos que, nesse caso, nomeiam os atos praticados pelos seres. De “xingar”, “xingamento”; de “esculhambar”, “esculhambação”. Os exemplos são muitos.

Além do acréscimo de sufixos, a língua portuguesa conta também com um curioso recurso para formar substantivos deverbais: arrancar um pedaço do verbo. Dito de forma mais elegante, é a chamada “derivação regressiva”, em que o substantivo criado, ao contrário do que acontece na sufixação, tem menos morfemas do que o verbo de origem. Para o ato de “comprar”, não temos “o compramento” ou “a compração”, mas “a compra”. Quando alguém pede desculpas por se atrasar, não lamenta “o atrasamento” ou “a atrasação”, mas “o atraso”.

Como se vê, há diferentes recursos para criar substantivos deverbais. Dada essa variedade de recursos, por que não haveria uma abundância de formas?

Dobletes deverbais: qual escolher?

Em cada um dos pares a seguir, qual palavra você escolheria? “Acúmulo” ou “acumulação”? “Preparo” ou “preparação”? “Desmonte” ou “desmontagem”? “Confronto” ou “confrontamento”? Cada uma dessas duplas é um exemplo de doblete, ou seja, são pares de palavras de mesma origem etimológica que surgiram e evoluíram com leves diferenças de sentido ou aplicação.

Entre os exemplos anteriores, convém saber que cada uma dessas formas está registrada no Dicionário Houaiss. Desse modo, jogando conforme o regulamento, podemos dizer que o termo escolhido por você, entre as opções citadas, foi uma escolha “correta”, no sentido de “referendada pela tradição”. Ainda assim, a própria intuição dos falantes pode sugerir que certos contextos favorecem alguma das formas: se falamos de uma receita culinária, parece mais corrente mencionar seu “preparo”; se um atleta está prestes a disputar um campeonato, espera-se que tenha a “preparação” adequada. Há tempos denuncia-se o “desmonte” de serviços públicos, não sua “desmontagem”.

Como se vê, mesmo em se tratando de sinônimos, não é incomum que cada termo assuma uma conotação própria e soe mais adequado a determinado contexto. Da mesma forma, não é raro que um dos termos seja menos produtivo (parece o caso de “confrontamento”). Portanto, os dobletes reforçam a máxima de que a sinonímia perfeita não existe, em qualquer língua natural.

Entre tantos pares, a dupla “desmate/desmatamento” nos chama atenção. No recente noticiário sobre a situação das florestas brasileiras, tem sido mais comum denunciar-se o seu “desmate”, especialmente nos títulos das notícias. “Desmatamento” estaria perdendo espaço devido ao número de caracteres na página? É uma hipótese.

Derivações que são um arraso!

Certos termos da informalidade são prova de que a criatividade linguística não é privilégio de falantes eruditos. A ação de “arrasar”, por exemplo, tem seu substantivo cognato registrado já no século 19, conforme datação do Dicionário Houaiss: trata-se do termo “arrasamento”. No entanto, para afirmar, em sentido figurado, que determinado evento foi um estonteante sucesso, diz-se, desde os anos 80 pelo menos, que foi um “arraso” – termo formado com base em “arrasar”, agora por derivação regressiva.

É curiosa ainda a história do termo “paquera”. Com registro no século 19, o substantivo “paqueiro” nomeava “que ou o que é adestrado para caçar pacas” (“paca” + “-eiro”, “paqueiro”), sempre segundo o Houaiss. Desse substantivo, vem o verbo “paqueirar” (depois, “paquerar”), que, em um sentido antigo, significava “observar com atenção; espreitar, vigiar escondido ou discretamente”, como se supõe que faria o predador das pobres paquinhas. A semelhança com aquele/a que ainda não se lança à pessoa amada, limitando-se a “paquerá-la”, pode explicar o novo sentido do verbo. Dele, nasce o deverbal, dando nome a essa ação: “a paquera”.

Mas quem veio primeiro?

Quando se deparam com casos de derivação regressiva, não é raro que estudantes atentos e críticos levantem a questão: mas quem garante que foi assim? Como saber se “atraso” veio de “atrasar”, ou se “atrasar” derivou de “atraso”? Não é o velho caso do ovo e da galinha?

Para responder, recorramos a um neologismo, talvez não tão novo assim, bastante popular no horário do almoço: “bandejar” (no sentido de “ir ao ‘bandejão’ para almoçar”). Nesse caso, sem dúvidas, pode-se afirmar que o substantivo “bandeja” é a base para se formar o verbo, não o contrário. Por quê? Elementar: o substantivo “bandeja” não nomeia o ato de “bandejar”, mas um objeto. É o mesmo que ocorre entre “planta” e “plantar”.

Diferentemente, “ataque”, “compra”, “atraso”, “cochilo”, “apelo”, entre tantos outros, dão nome aos atos. Ainda que as pesquisas linguístico-filológicas nem sempre consigam atestar uma cronologia entre as formas, o conceito de “deverbal” contém em si um imperativo lógico: no início, era o verbo; em seguida, os deverbais.

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