Um psiquiatra na luta pela liberdade e contra o autoritarismo  

Centenário de José Angelo Gaiarsa é celebrado com lançamento de livro sobre sua vida e obra

 13/11/2020 - Publicado há 3 anos
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José Angelo Gaiarsa: legado do psiquiatra é referência para os dias atuais, afirma a organizadora do livro O Legado de J. A. Gaiarsa, Fernanda Carlos Borges – Foto: Grupo Editorial Summus

Um psiquiatra na luta pela liberdade
e contra o autoritarismo

Centenário de José Angelo Gaiarsa é celebrado com lançamento de livro sobre sua vida e obra

13/11/2020
Por Leila Yaeko Kiyomura
Arte: Simone Gomes/Jornal da USP

José Angelo Gaiarsa foi um homem do início do século 20, de profundas transformações no comportamento de crianças, jovens, mulheres, homens e idosos. No modo de pensar e agir nas relações consigo mesmo, com os outros, com a realidade. Foi um homem inteligente, curioso e inquieto. Sempre disposto a ir além das restrições do normal.”

Com as lembranças do ser humano e cientista, Paulo Martins Gaiarsa escreve sobre o seu pai. O depoimento de filho, psicólogo e terapeuta corporal está no livro O Legado de J. A. Gaiarsa, organizado por Fernanda Carlos Borges. Publicado pela Editora Ágora, a obra homenageia o psiquiatra José Angelo Gaiarsa (1920-2010), que em 2020 faria 100 anos.

Fernanda Borges reuniu artigos e entrevistas que contam a trajetória de Gaiarsa, compondo o perfil do psiquiatra graduado pela USP através de familiares, amigos, pacientes, psicoterapeutas, filósofos, médicos e pesquisadores. Ao percorrer os textos, os leitores vão conhecer também detalhes do período da ditadura, o posicionamento crítico de Gaiarsa contra o autoritarismo e as suas teorias em prol da liberdade, contracultura e revolução sexual.

Para este livro sobre seu legado contribuíram algumas pessoas cujos fios de vida foram entrelaçados com a vida dele na grande tessitura complexa que é o contexto Brasil.

“Sabemos que, para ser homenageado, Gaiarsa não precisa ter sido perfeito em tudo. Corajosos como ele abrem caminhos, erram muito e acertam muito”, explica Fernanda na apresentação do livro. “E aprendemos com seus erros e  acertos. Transformam-se em medida para nossos juízos. Para este livro sobre seu legado contribuíram algumas pessoas cujos fios de vida foram entrelaçados com a vida dele na grande tessitura complexa que é o contexto Brasil. Mas não foram somente essas. Muitas outras teceram esse legado por meio dos grupos experimentais lendo seus livros e acompanhando o psiquiatra na televisão.”

Fernanda orienta o leitor: “Você verá Gaiarsa inspirando corajosos que souberam abrir novos caminhos, assim como os acolhendo quando, cansados e machucados, o procuraram, caso da monja Coen; inspirando pessoas contra costumes mesquinhos e mentalidades autoritárias como nos textos de Regina Navarro Lins e Daisy Souza; acolhendo intelectuais e mulheres corajosas no movimento de contracultura paulistana como Regina Favre.”

Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, em 1968, contra a ditadura militar – Foto: Reprodução

A organizadora chama a atenção para a contribuição reichiana e da psicoterapia corporal nos textos de Dárcio Valente Rodrigues e Pedro Prado. Também há a relação com a psicanálise no artigo de Fábio Landa. E os relatos do filho Paulo Gaiarsa e do sobrinho, médico e psicanalista André Gaiarsa. “Ambos contam um pouco sobre as transformações pessoais na vida de Gaiarsa e sua influência sobre a vida deles.”

Fernanda Borges acredita que todo esse legado é referência para o tempo que estamos atravessando. “Em 2020, vivemos o apogeu do levante das estruturas de dominação sobre nosso corpo e nossa mente; tais estruturas querem nos conduzir de volta à mesquinharia e à destruição. Contra essas forças, Gaiarsa ainda inspira, acolhe e ensina.”

Assim como a Tropicália foi engolida pela ditadura e hoje se vê resgatada, temos de redescobrir e valorizar Gaiarsa.”

O Legado de J. A. Gaiarsa oferece uma leitura fluente reunindo conversas com Fernanda Carlos Borges com os entrevistados muito à vontade e também artigos, alguns analíticos, outros reflexivos, que contextualizam José Angelo Gaiarsa no momento político e social em que viveu entre sonhos e ideais.

A primeira entrevista é com Regina Favre, professora e pesquisadora do corpo no Laboratório do Processo Formativo, em São Paulo. Ela responde sobre a importância do legado de Gaiarsa no momento atual: “Assim como a Tropicália foi engolida pela ditadura e hoje se vê resgatada, temos de redescobrir e valorizar o Gaiarsa e aquele Zé Celso – o que fez O Rei da Vela – de novo. O Gaiarsa é a clínica daquela peça. O que me levou para o Gaiarsa foi o que vi em O Rei da Vela sendo montado.”

Outra entrevista que certamente vai surpreender o leitor é com a monja Cohen, que mescla a sua própria história como jornalista e paciente com o seu psicoterapeuta. “Gaiarsa falava muito sobre os sonhos. Ele gostava de Jung e fazia uma relação interessante entre Jung e Reich. Sonhei uma vez que eu havia acordado, e ele falou: ‘Que maravilha! É sempre bom acordar durante o sonhos’. O monge fundador da tradição soto zen, no Japão, mestre Eihei Dogen, escreveu em um dos capítulos de sua obra máxima, Shobogenzo: ‘A vida é um sonho dentro de um sonho’. Lembrei-me do Gaiarsa quando falava da importância de despertar, do acordar no meio do sonho.”

Devo afirmar que o Zé, possuidor de uma ampla tolerância ante fatos humanos e sexuais, foi um dos principais revolucionários."

No texto , o psicólogo e escritor Dárcio Valente Rodrigues homenageia o amigo. “Não há dúvidas de que, ao ler o título , grande parte dos leitores pensará tratar-se do Zé Ninguém do Reich. Nada disso. Muito pelo contrário, quero falar de alguém que foi o principal precursor e divulgador de Reich, além de iniciador oficial das técnicas corporais em psicoterapia aqui no Brasil. Uma pessoa maravilhosa e humana como jamais conheci.”

Rodrigues destaca: “Devo afirmar que o Zé, possuidor de uma ampla tolerância ante fatos humanos e sexuais, foi um dos principais revolucionários, senão o maior deles, a lutar contra os preconceitos mesquinhos que dominavam de forma marcante a nossa sexualidade”. Acentua: “Hoje, apesar de ainda vivermos imersos em preconceitos, a tolerância em relação à sexualidade é incomparavelmente maior do que em passado bastante recente. Uma frase do seu livro A Estátua e a Bailarina chamou bastante a minha atenção: ‘Ai de quem não conhece o corpo inteiro – o próprio e o alheio; jamais será inteira sua alma’”.

Foto da capa do disco “Tropicália”, movimento que foi censurado na ditadura – Foto: Reprodução

O amigo faz questão de buscar cenas que ficaram para sempre: “O Zé era um sujeito bastante inteligente. Foi primeiro colocado na Faculdade de Medicina da USP e manteve-se em primeiro lugar durante todo o curso. Estudou muito Reich e Jung. Naquela época não havia tradução para o português, os interessados tinham de correr atrás e estudar, na melhor das hipóteses, em inglês, espanhol e italiano”.

Também resgata as cenas de um leitor contumaz. “Certa vez, tive a oportunidade de observá-lo, já com quase 80 anos, sentado, encostado a uma árvore, posição que me pareceu bastante desconfortável, lendo um livro por mais de seis horas consecutivas. Ao terminar, levantou-se tranquilo, como se estivesse voltando de um agradável mergulho no mar. Fiquei abismado e, apesar da simplicidade do fato, nunca esqueci.”

O Legado de J. A. Gaiarsa, organização de Fernanda Carlos Borges, editora Ágora, 168 páginas, R$ 59,70, e-book: R$ 35,90 Site: www.editoraagora.com.br

Capa do livro O Legado de J. A. Gaiarsa


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A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.


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