Professor argentino faz conferência na USP sobre mercado editorial

Evento acontece no dia 9, terça-feira, às 19h30, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 Publicado: 05/04/2024
A concentração de empresas no mercado editorial é um dos temas que serão debatidos na conferência do professor José Luis De Diego – Foto: Reprodução/Freepik

Literatura e Mercado Editorial é o título da palestra que será proferida no dia 9, às 19h30, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, pelo professor José Luis De Diego, da Universidad Nacional de La Plata, na Argentina. A entrada é grátis. O evento é promovido pelo Núcleo de Pesquisa do Livro (Nupel) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e pelo Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH. A coordenação é da professora Marisa Midori, da ECA.

O processo de concentração de mercado em poucas mãos foi o sinal distintivo e característico da indústria editorial desde os anos 1990″, afirma De Diego, em entrevista aos pesquisadores da USP Hugo Quinta e Rubem Barros. “A concentração do mercado em poucas empresas traz consigo os males de qualquer oligopólio. As armas que ainda temos são as leis antimonopólios (que, no mercado do livro, foram aplicadas na França) e a chamada lei do preço fixo”, acrescenta o professor.

De Diego é professor e pesquisador do Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria da Universidad Nacional de La Plata, onde leciona as disciplinas de Introdução à Literatura e Teoria Literária. Coordenador da revista Orbis Tertius, publicada por aquele centro, é autor de obras como Roland Barthes. Una Babel Feliz (1993), La verdad sospechosa. Ensayos sobre literatura argentina y teoria literaria (2006), La otra cara de Jano – Una mirada crítica sobre el libro y la edición (2015) e Los autores no escriben libros – nuevos aportes a la história de la edición (2019), entre outras (leia abaixo entrevista do professor De Diego concedida aos pesquisadores Hugo Quinta e Rubem Barros).

A conferência Literatura e Mercado Editorial, do professor José Luis De Diego, será realizada no dia 9, terça-feira, às 19h30, na Cátedra Jaime Cortesão da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (Avenida Prof. Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, em São Paulo). Entrada grátis.

Cartaz do evento – Foto: Divulgação/Nupel

Mundo editorial sofre dos males de qualquer oligopólio

Por Hugo Quinta e Rubem Barros

A concentração do mundo editorial nas mãos de grandes empresas faz com que a oferta literária padeça do mesmo mal que atinge outros mercados: padronização dos gostos e da oferta, diminuição da diversidade e dos riscos inerentes à experimentação de linguagem e forma do livro.

“Nada muda nos princípios e no comando.” É o discurso comum dos representantes de conglomerados editoriais quando adquirem selos de prestígio cultural. “Já sabemos quanta hipocrisia há nessas declarações de intenções”, diz o professor José Luis De Diego, doutor em Letras pela Universidade Nacional de La Plata, Argentina, onde ministra as disciplinas de Introdução à Literatura e Teoria Literária II, além de ser um dos mais destacados pesquisadores da história do livro e do mercado editorial latino-americano.

De Diego aprofundou-se nos estudos editoriais depois de especializar-se em áreas como história intelectual, teoria literária e literatura argentina. Atualmente mantém uma rede de intercâmbio com pesquisadores de países latino-americanos que estudam o livro e a edição sob vários aspectos. É por esse motivo que De Diego estreitou os laços com grupos de pesquisa no Brasil, em especial com pesquisadores da USP e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Autor de trabalhos publicados em diversos países da América Latina, destacam-se as seguintes obras lançadas na Argentina: Roland Barthes. Una Babel Feliz (1993, editora Alamagesto), ‘¿Quién de nosotros escribirá el Facundo?’ Intelectuales y escritores en Argentina (1970-1986) (2001, editora Al Margen) e La Verdad Sospechosa. Ensayos sobre Literatura Argentina y Teoria Literaria (2006, editora Al Margen). Mais recentemente, organizou Editores y Politicas Editoriales en Argentina (1880-2010), obra lançada em 2014 pelo Fundo de Cultura Económica, além de ter publicado dois títulos, de sua autoria, pela editora Ampersand: La Otra Cara de Jano – Una Mirada Crítica sobre el Libro y la Edición (2015) e Los Autores no Escriben Libros – Nuevos Aportes a la História de la Edición (2019). A única obra de De Diego publicada em língua portuguesa é Projetos Editoriais e Redes Intelectuais na América Latina, que saiu pela editora Moinhos, em 2020, com tradução de Ana Elisa Ribeiro.

Na entrevista a seguir, além de comentar sobre o monopólio cultural de conglomerados editoriais, De Diego também aborda aspectos relacionados à interdisciplinaridade inerente ao campo de estudos do livro e da edição e o papel das editoras independentes e da crítica literária no século 21.

As pesquisas sobre a história do livro e da edição têm se expandido na América Latina desde finais do século passado. Em sua opinião, quais seriam os países latino-americanos que têm grupos e pesquisas mais relevantes nessa área? Você destacaria algum em particular?

No México, destacam-se os trabalhos de Marina Garone Gravier, do Instituto de Pesquisas Bibliográficas da Unam, Freja Cervantes Becerril, da Uam, e Sebastián Rivera Mir. Na Colômbia, destaca-se o trabalho do Instituto Caro y Cuervo, em Bogotá. Margarita Valencia, Paula Marín Colorado e Juan David Murillo estão produzindo lá. Conheço um pouco menos a situação do Brasil, mas gostaria de destacar o trabalho de Ana Utsch, da UFMG, e Ana Elisa Ribeiro, do Cefet-MG. Em São Paulo, li valiosas contribuições de Marisa Midori, Nelson Schapochnik, Gabriela Pellegrino, da USP, e Márcia Abreu, da Unicamp. Na Argentina, cabe mencionar Gustavo Sorá e sua equipe na Idacor (Universidade Nacional de Córdoba); há o grupo liderado por Alejandro Dujovne, do mestrado em Sociologia da Cultura da Unsam e o que lidero na UNLP. É claro que neste brevíssimo relato não pretendo excluir contribuições valiosas de outros países latino-americanos, limitando-me apenas a apontar o que sei de melhor. Não pretendo, nessa lista, qualquer objetividade. Em termos de linhas de pesquisa, elas são muito variadas e diversas: há quem trabalhe mais a materialidade do impresso (Ana Utsch), as trajetórias editoriais (Gustavo Sorá sobre José Olympio e Arnaldo Orfila Reynal), a editoração e a literatura (Paula Marín Colorado e eu), edição e política (Marisa Midori e Sebastián Rivera Mir), sobre o livro antigo (Marina Garone), sobre editoração, Estado e instituições (Alejandro Dujovne) etc.

Apesar da existência de inúmeros estudos sobre o universo editorial numa perspectiva interdisciplinar, ainda há resistência nas universidades latino-americanas em relação aos pesquisadores que partem desse horizonte para realizar suas pesquisas. A que se deve essa barreira institucional? Como os cursos voltados para pensar a edição e a formação de editores(as) poderiam valorizar a formação e a pesquisa interdisciplinar?

Nos estudos sobre história do livro, da edição e da leitura, convergem diferentes disciplinas: história, sociologia, estudos literários, biblioteconomia, antropologia, história da educação. Essa circunstância, facilmente constatada, constitui sua força e, ao mesmo tempo, sua fraqueza. Força porque as diversas contribuições enriquecem o objeto de estudo com perspectivas díspares, e aprendemos uns com os outros. Por outro lado, ao criarmos um espaço de pesquisa fora das disciplinas tradicionais, não arrastamos a inércia, o peso institucional e os conflitos típicos dessas disciplinas, nos movimentamos mais livremente. Se, por um lado, essa visão de diferentes perspectivas disciplinares confere maior riqueza à percepção de nosso campo, também é verdade que lhe confere um grau de instabilidade e fragilidade constitutiva, tanto científica quanto institucional. Quero dizer que aqueles de nós que estão no ramo do livro e da edição, e que vêm dos estudos literários, são uma espécie de irmãos mais novos daqueles que dedicam seu tempo às afamadas reuniões (congressos, conferências, eventos) de literatura. Somos nós que lidamos com objetos, livros e coleções, e também costumamos falar de números. Mas sociólogos que trabalham em nosso campo também são raros, e historiadores e antropólogos que o fazem são minoria. Gisèle Sapiro, referindo-se aos inconvenientes institucionais enfrentados pela sociologia da literatura, escreveu: “Muito ‘sociológico’ para os letrados e muito ‘literário’ para os sociólogos, filiados em alguns países à literatura e em outros à sociologia, ela sofre de uma ausência de institucionalização que contrasta com a riqueza das obras produzidas em seu campo por meio século”. Palavras mais, palavras menos, a afirmação da pesquisadora francesa é apropriadamente adequada ao nosso campo de estudos. Aqui o dilema nos é apresentado da seguinte maneira: o estudo da publicação corresponde a profissionais da história, da filologia ou da sociologia? Essa pergunta, como sabemos, não admite uma resposta epistemológica: os objetos de estudo são construtos e não há relações de propriedade a priori entre uma disciplina e este ou aquele objeto. Assim, a questão retorna, como um bumerangue, à organização institucional e política de nossos campos científicos.

O quanto a forte presença de grupos internacionais tem impactado o trabalho editorial nesses país? Quais são os maiores prejuízos causados pelos conglomerados editorais?

Se o objetivo é ilustrar o processo de concentração no mundo editorial, o itinerário da Random House, uma das principais marcas dos Estados Unidos, é emblemático. Em 1960, a RH adquiriu a seleta Pantheon Books e deixou André Schiffrin à frente dela a partir de 1962. Vinte anos depois, a RH foi vendida ao magnata Samuel Newhouse. A mudança de direção da empresa e a consequente demissão de Schiffrin deram origem ao difundido livro A Edição Sem Editoras (L’édition sans éditeurs foi originalmente publicado na França, em 1999, pela editora La Fabrique), no qual Schiffrin se torna uma das primeiras e mais autorizadas vozes a alertar sobre a deterioração cultural resultante da chegada do capital transnacional ao mundo editorial. Em 1998, os alemães da Bertelsmann compraram a RH no negócio de maior destaque até hoje – e mais caro: US$ 1,3 bilhão. Em outubro de 2012, foi anunciada a fusão da Penguin e da RH, na qual o grupo alemão Bertelsmann controla 53% e o grupo inglês Pearson, 47%; Os jornais acentuaram, através de manchetes sensacionalistas, a dimensão da operação: “Uma fusão de gigantes”, “Uma aliança entre colossos”. No entanto, sabemos que, durante a transição entre um século e outro, o processo que conhecemos como globalização já havia se consolidado e a vertiginosa concentração empresarial havia chegado ao mundo editorial de língua espanhola. O início dessa transformação na Espanha ocorreu em 1977, com a chegada precoce do grupo Bertelsmann por meio da compra de 40% da marca Plaza & Janés. A partir de então, intensificou-se a formação de grandes conglomerados e o mercado foi cada vez mais deixado nas mãos de um oligopólio transnacional, que se caracterizou por dar grande fluidez ao comércio entre países e por impor critérios de alta rentabilidade e rápida rotação de produtos. Na Argentina, os investimentos vieram principalmente de empresas espanholas, embora algumas delas já fizessem parte de conglomerados multinacionais que ou eram originalmente editoras e ao longo do tempo diversificaram seus investimentos (como os grupos Bertelsmann ou Planeta), ou eram empresas de multimídia que decidiram ingressar no mercado livreiro (como a italiana Finivest). Assim, o processo de concentração de mercado em poucas mãos foi o sinal distintivo e característico da indústria editorial desde os anos 90. Cada vez que um desses grandes grupos adquire um rótulo de certo prestígio que acumulou meticulosamente seu capital simbólico, a mensagem é a mesma: “Manteremos a identidade e a independência de todos os rótulos, bem como dos programas editoriais de ambas as empresas” [a citação é de quando a Penguin comprou a Santillana em 2014] ou “Nada muda nos princípios e no comando” [a citação é de quando a Penguin comprou 45% da Companhia das Letras em 2011]. No entanto, já sabemos quanta hipocrisia há nessas declarações de intenções. A concentração do mercado em poucas empresas traz consigo os males de qualquer oligopólio. As armas que ainda temos são as leis antimonopólios (que, no mercado do livro, foram aplicadas na França) e a chamada lei do preço fixo.

Quais iniciativas podem valorizar a bibliodiversidade tanto do ponto de vista da materialidade como do conteúdo (temas e linguagens)? Onde se encontram os espaços que valorizam essa variedade editorial?

A iniciativa mais importante é a chamada lei do preço fixo, que significa que os livros devem ser vendidos, com algumas exceções, pelo mesmo preço, seja em vendas on-line, em lojas de departamento ou em pequenas livrarias. Outra iniciativa tem a ver com as compras do Estado para abastecer sua rede de bibliotecas, especialmente as bibliotecas populares. Se essas compras forem orientadas para o benefício da diversidade cultural, beneficiarão as marcas que produzem bons livros, às vezes distantes das demandas imediatas do circuito comercial.

Outro fenômeno que parece marcar os mercados latino-americanos é a presença de centenas de editoras independentes, muitas vezes ancoradas em questões identitárias (racismo, gênero, sexualidades etc.). Em sua visão, elas tendem a se manter como editoras de nicho ou podem alargar suas fronteiras? No caso específico da Argentina, de que maneira elas conseguiram sobreviver?

O processo de concentração tinha sua contrapartida: a polarização. Na medida em que os grandes consórcios buscam rentabilidade crescente e acelerada, deixam inúmeros “nichos” de mercado sem solução. No setor do livro, a grande maioria dos produtos não tolera as exigências de vendas vertiginosas e de um volume de negócios rápido. Constituem, assim, o objeto de interesse e a condição de possibilidade para o surgimento de pequenas e médias editoras independentes (assim chamadas por não dependerem de nenhum dos grandes grupos). O surgimento de editoras independentes nos últimos anos pode ser visto em muitos países, especialmente naqueles onde a polarização se tornou mais aguda. Com isso quero dizer que, se fosse um fenômeno puramente cultural, teria surgido num país ou numa região. Sua generalização nos faz pensar que a razão de seu surgimento é mais econômica do que cultural. Como salientou a professora Malena Botto, da Universidade Nacional de La Plata, os grandes consórcios se enfrentam a partir de um critério de competitividade muito marcado. Tal como tem acontecido na Europa, nas pequenas empresas inverte-se essa lógica e prevalece um critério de solidariedade: seja através da constituição de empresas dedicadas à exportação ou distribuição eficiente de impressos, seja através da exposição da sua produção em diferentes feiras do livro em estandes compartilhados. A maioria das editoras emergentes se reconhecem como projetos culturais. Como não conseguem ocupar um lugar nas lutas pela acumulação de capital econômico, optam por construir um capital simbólico que lhes dê certo prestígio e reconhecimento. Nesse caminho, enfrentam um obstáculo perigoso: se conseguirem aliar prestígio cultural e um nível mínimo de rentabilidade, podem se tornar atrativas para a voracidade de algum conglomerado. Como já dissemos, toda vez que adquirem uma editora com catálogo reconhecido, os gestores das grandes editoras primeiro dizem que vão respeitar as decisões que foram tomadas na empresa. No entanto, as exigências por níveis mais elevados de rentabilidade acabam por colapsar o prestígio acumulado. É evidente que a Planeta, por exemplo, procurou acumular o reconhecimento cultural da Seix Barral ou Emecé (e que a Planeta há muito havia perdido), o que não é evidente é que Seix Barral ou Emecé continuam a ser o que eram depois de vendidas. E, embora possa parecer paradoxal, as pequenas editoras independentes que buscam com cheiro e lucidez sua matéria-prima muitas vezes a encontram para que possa ser rapidamente vendida aos conglomerados editoriais. Se partirmos do pressuposto de que quanto mais capital, maior a capacidade de investimento de risco, no mundo dos livros essa lógica se inverte: quem arrisca em novos valores é a pequena editora e, se ela conseguir encontrar um autor que vende 10 mil exemplares, o autor é rapidamente contratado pela Planeta ou pela Penguin-Random House, que, dessa forma, trabalham com risco mínimo. A questão central poderia ser colocada nestes termos: o crescente processo de concentração e a constituição de um oligopólio transnacional constituem a soma de todos os males, dos quais as editoras independentes seriam algo como seus bodes expiatórios? Resumindo: elas existem apesar de ou graças a? Um difundido lugar-comum tende a associar os grandes consórcios com livros de conteúdo de baixa qualidade, meramente comerciais e oportunistas, e edição independente com livros de valor literário ou refinamento teórico. Como todos os lugares-comuns, sofre de excessiva generalização. Em todo caso, e para além da qualidade de cada um dos catálogos, a existência desse conjunto de rótulos dá, neste momento, um impulso renovado à publicação cultural e tornou-se uma garantia daquilo a que se convencionou chamar de bibliodiversidade.

Ao longo do século XX, a Argentina teve um número considerável de boas revistas e livros literários, além de uma forte tradição crítica. Seria possível afirmar que a crítica literária ainda tem um lugar de destaque na imprensa? Ou, como no Brasil, foi deslocada para o mundo universitário como espaço de reflexão?

A crítica literária, pelo menos desde o final do século 19, produziu discursos socialmente significativos (sobre isso podemos citar a crítica literária Beatriz Sarlo). Acredito que as derrotas políticas que atingiram uma geração de intelectuais do nosso continente durante as revoltas dos anos 1960 e 1970 levaram a um enclausuramento da prática crítica. Isolados no mundo acadêmico e universitário, muitos dos críticos abandonaram a vontade de aderir a iniciativas emancipatórias de transformação social, especializando-se e fechando-se em seu próprio discurso, por vezes hermético e oracular, e contagiando os alunos com certo fascínio por autores e textos que não são compreendidos, e que por muitas vezes abandonaram a racionalidade dos argumentos. Nesse contexto, a chamada crítica cultural revelou-se uma espécie de tábua de salvação que, mais uma vez, deu certo sentido social à prática crítica. As novas agendas institucionais, derivadas do que a academia norte-americana costuma chamar de “multiculturalismo”, nos inundaram com trabalhos sobre etnias, gêneros (no sentido de gender), marginalidades e exclusões, identidades, subalternidades e alteridades diversas, desterritorializações, nomadismos e migrações e, claro, corpos. As leituras enviesadas de autores como Derrida e Foucault em certas universidades levaram à exaltação das diferenças e à abolição de qualquer vislumbre de totalidade. Qual o lugar da literatura nos chamados “estudos culturais”? Poderíamos dizer que ela acabou sendo colocada em um objeto mais amplo de natureza cultural ou antropológica, no qual a literatura é incluída como manifestação ou como testemunho identitário de uma cultura. O resultado dessa operação é uma literatura que é anulada em sua especificidade e neutralizada no que sustenta sua irredutibilidade a determinações de vários tipos. Um exemplo anedótico: há muitos anos, em um Departamento de Literatura Latino-Americana de uma universidade espanhola, perguntei quais autores argentinos estavam estudando. Um professor respondeu: “Manuel Puig”, e acrescentou: “Não o conhecíamos, mas começamos a lê-lo porque sua obra foi divulgada numa conferência de literatura gay”. Minha pergunta, então, foi espontânea, mas contém a chave desse debate: “Mas, então, vocês estão lendo Puig porque acham que ele é um bom escritor ou porque ele era gay?”. Assim, o multiculturalismo multiplicou as demandas de diversas minorias sociais (religiosas, étnicas, sexuais) que abordam a literatura a partir dessas demandas e julgam obras a partir de esquemas ideológicos rígidos que dispensam, ou geralmente evitam, a avaliação estética; o preconceito ideológico, identitário, acaba por obnubilar o julgamento estético.

Hugo Quinta é doutor em História, pesquisador residente da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP e pós-doutorando da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, onde desenvolve pesquisas como bolsista da Fapesp.

Rubem Barros é jornalista, editor e radialista, doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.


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