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Em sua primeira exposição individual nos Estados Unidos, Tarsila do Amaral (1886-1973) viaja em companhia da USP. Em cartaz no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) até 3 de junho, a mostra Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil reúne mais de 120 itens, entre telas, desenhos, fotografias e documentos ligados à pintora modernista. Parte dessa coleção vem do Museu de Arte Contemporânea (MAC) e do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), ambos da USP.
Centrada na produção da artista durante a década de 1920, período em que realizou seus trabalhos mais celebrados, a exposição passou primeiro pelo Instituto de Arte de Chicago (AIC), entre outubro de 2017 e janeiro deste ano. As cores vibrantes e os temas tropicais de Tarsila chegaram ao MoMA em fevereiro. A curadoria ficou a cargo do venezuelano Luis Pérez-Oramas, responsável pela 30ª Bienal de São Paulo (2012), e da estadunidense Stephanie D’Alessandro.
O MAC contribuiu com duas telas, A Negra (1923) e Floresta (1929). Primeiro anúncio da explosão criativa que viria a seguir, A Negra é resultado da soma dos estudos cubistas que Tarsila realizou na França com o desejo de ser a pintora de sua terra, conforme relatou para a família em carta de 1923. Por sua importância histórica e artística, o empréstimo da obra precisou de condições especiais.
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Em um acordo inédito, o museu recebeu em troca da tela de Tarsila o quadro Champs de Mars: A Torre Vermelha (1911/1923), do francês Robert Delaunay (1985-1941). Parte do acervo do Instituto de Arte de Chicago, a obra pertenceu à modernista e fica no MAC até o final da exposição no MoMA. Para o dia 10 de abril está prevista uma visita guiada à obra, feita pela doutoranda do MAC Regina Teixeira de Barros, ex-curadora da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Já o IEB cedeu 16 itens, incluindo a tela O Mamoeiro (1925), quatro fotografias e oito desenhos, dentre eles um esboço para A Negra. O instituto enviou também um exemplar do livro de poesias Pau-Brasil, escrito por Oswald de Andrade (1890-1954) e ilustrado por Tarsila. Completam a remessa o catálogo e a capa do programa da Semana de Arte Moderna de 1922, da qual a artista não participou, mas a que tem sua imagem associada. A maior parte do conjunto integra a coleção pessoal do também modernista Mário de Andrade (1893-1945), cuja guarda está com o IEB.
“Foi um processo longo, não foi uma curadoria de catálogo. Foi uma curadoria de pesquisa. Eles vieram aqui, veio a equipe do MoMA e de Chicago”, comenta Bianca Dettino, da Coleção de Artes Visuais do IEB, que acompanhou a montagem e a desmontagem da exposição em Chicago e a montagem em Nova York.
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Inventando a arte moderna no Brasil
Para apresentar aos Estados Unidos a revolução de cores, traços e temas realizada por Tarsila durante os anos 1920, os curadores Luis Pérez-Oramas e Stephanie D’Alessandro reuniram obras espalhadas em museus e coleções do Brasil, América Latina, Estados Unidos e Europa. O destaque fica para os trabalhos compreendidos pelas fases “pau-brasil” e “antropofágica”, fortemente influenciados pelas experiências vividas com seu então companheiro Oswald de Andrade e o amigo Mário de Andrade.
São desse período Abaporu (1928) e Antropofagia (1929) que, junto de A Negra, compõem a trindade mais famosa da artista. Numa ocasião rara, a exposição reúne na mesma sala as três obras, acompanhadas de esboços e estudos, permitindo ao visitante compará-las e compreender o desenvolvimento do trabalho de Tarsila.
Com A Negra, a artista toma como ponto de partida o aprendizado formal com os mestres cubistas André Lhote (1885-1962), Fernand Léger (1881-1955) e Albert Gleizes (1881-1953) para daí investigar temas brasileiros. Para Nádia Battella Gotlib, autora do livro Tarsila do Amaral: a Modernista, o quadro dialoga com as geometrias do cubismo e as formas monumentais de Léger e, ao mesmo tempo, se volta para o Brasil. “A arte brasileiríssima se evidencia no modo de elaborar o motivo: a negra, de lábios grossos, olhos amendoados e seios enormes, impõe-se na massa volumosa”, escreve a pesquisadora no livro.
Já distante do cubismo, Abaporu,“homem que come gente” em tupi, foi dado como presente de aniversário para o marido Oswald de Andrade. Serviu de inspiração para o Manifesto Antropofágico e se tornou a imagem por excelência do movimento que pensava a cultura brasileira como o canibalismo das referências estrangeiras e a digestão num produto original e tipicamente nacional. É considerada a mais valiosa obra de arte brasileira, arrematada em leilão em 1995 pelo argentino Eduardo Costantini. Hoje, integra a coleção do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba).
Espécie de casamento das obras anteriores, Antropofagia reorganiza na tela elementos de A Negra e Abaporu. Atualmente, o quadro faz parte do acervo da Fundação José e Paulina Nemirovsky, em São Paulo.
A exposição apresenta ainda outros trabalhos conhecidos de Tarsila, como A Cuca (1924), Carnaval em Madureira (1924), Morro da Favela (1924), Palmeiras (1925), O Ovo (Urutu), de 1928, e Cartão Postal (1929). A seleção chega até sua chamada fase “social”, da qual faz parte Operários (1933).
Completam a mostra desenhos, rascunhos, fotografias e documentos históricos. Dentre os esboços está o Estudo para a tela Composição (Figura Só) III, de 1930. O desenho é o primeiro trabalho de Tarsila incluído na coleção do MoMA.
Para a historiadora da arte e professora do MAC Ana Magalhães, o interesse atual dos Estados Unidos em Tarsila se relaciona com o resgate do conceito de antropofagia, iniciado a partir da 24ª Bienal de São Paulo, realizada em 1998.
“A Tarsila é colocada em evidência a partir do momento em que a 24ª Bienal de São Paulo toma como conceito fundamental a noção de antropofagia, elaborada por Oswald de Andrade em 1928, como uma ferramenta de leitura possível da história da arte do século 20”, afirma Ana. Segundo a pesquisadora, a visibilidade internacional da Bienal, na qual Tarsila esteve presente com sua produção dos anos 1920, garantiu um momento de virada na escrita da narrativa da história da arte no Brasil, que resultou em contribuições internacionais.
“É o momento em que a história da arte entra em crise como disciplina e outras proposições, como os estudos visuais, a cultura visual, começam a ganhar importância”, explica a professora. “Há uma reformulação do ensino de história da arte em vários países e que, no caso dos Estados Unidos, resultou na abertura de linhas de pesquisa por todo o país dedicadas ao estudo da arte latino-americana, incluindo aí o Brasil. Nós estamos falando de uma nova geração de pesquisadores que começam a ter uma outra visão do que é a contribuição brasileira nesse contexto internacional e aí nossos artistas começam a aparecer como temas de pesquisa lá fora.”
Tarsila na USP
O IEB conta ao todo com 29 trabalhos de Tarsila encontrados na coleção de Mário de Andrade, principalmente desenhos. Dentre eles se destacam o Autorretrato (1922) e o Retrato de Mário de Andrade (1922), ambos pastéis sobre papel. O instituto possui ainda a correspondência trocada entre o autor de Macunaíma e a artista, além de documentos não totalmente catalogados, frutos da doação feita em 2016 pela professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP Aracy Amaral.
Além de A Negra e Floresta, a coleção do MAC inclui outra tela de Tarsila, E.F.C.B (Estrada de Ferro Central do Brasil), de 1924, e dois desenhos também dos anos 1920. O museu abriga ainda uma coleção de gravuras, cuja autoria permanece em debate.
“Um aluno que vem estudar na USP está diante de uma infraestrutura de um privilégio absoluto”, comenta Ana. “Ele está diante da presença não só de tudo que as unidades podem oferecer, mas também dos quatro museus que a Universidade tem. O MAC tem para o Brasil o valor de um MoMA para os Estados Unidos. Nós temos obras aqui seminais. São obras que contribuíram e muito, como é o caso de A Negra, para constituir a nossa cultura de artes visuais.”
[cycloneslider id=”147892″]A USP também produz pesquisas sobre a modernista. É de Aracy Amaral o primeiro livro biográfico sobre ela, Tarsila – Sua Obra e seu Tempo (1975), fruto de sua tese de doutorado. É de Aracy também a coordenação do catálogo raisonné de Tarsila, reunindo toda a produção da artista. Para Bianca, “você não pode estudar Tarsila sem falar da Aracy”.
A Universidade também foi responsável pela edição fac-símile de duas publicações com participação de Tarsila. Uma delas é o livro Pau-Brasil, parte integrante da Caixa Modernista organizada pelo professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) Jorge Schwartz. A outra é Feuilles de Route, coletânea de poemas do suíço Blaise Cendrars (1887-1961), também ilustrada pela artista.
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