Produzindo vacina: o desafio de dominar o ciclo todo

Reportagem especial em quatro partes aborda os desafios de fazer vacinas no Brasil. Nesta matéria, conheça as etapas do desenvolvimento e fabricação de imunizantes e saiba em quais delas ainda temos pouca autonomia

 16/11/2022 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 30/11/2022 as 15:30

Bernardo Yoneshigue, Júnior Moreira Bordalo e Milena Hildete,
com supervisão e edição de Luiza Caires*

O professor e coordenador do Laboratório de Desenvolvimentos de Vacinas da USP, Luís Carlos Ferreira, reconhece o papel fundamental da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Butantan na produção de vacinas, durante a pandemia e fora dela. Ele chama a atenção, porém, para o fato de o processo não ser integralmente dominado por essas instituições.

E o que seria esse ciclo completo? É o que contém todo o desenvolvimento, desde as primeiras etapas de pesquisa, testes e aprovações, até chegar à fabricação e ao envase. “É desenvolver a formulação em laboratório, em condições experimentais, e mostrar que ela de fato funciona. Então você avança para a produção dessa vacina em maior quantidade, e depois avalia se essa formulação, que vai ser testada em humanos, é segura nos ensaios pré-clínicos. E aí, finalmente, busca a aprovação pela Anvisa para iniciar os testes clínicos”, explica.

O professor da USP compara, didaticamente, a produção de uma vacina à de um carro. “As montadoras recebem uma infinidade de peças e componentes, montam, e o carro sai de lá andando. Mas existe uma cadeia produtiva que vai desde o desenhista que faz o modelo até todos os outros que desenvolvem o motor, os sistemas eletrônicos e tudo mais que precisa estar constantemente evoluindo. Dominar essa cadeia completa, demanda uma quantidade muito grande de profissionais e de infraestrutura”.

Para Ferreira, a crise da pandemia deixou muito evidente a necessidade de o Brasil ter mais autonomia nesse processo. “Mesmo a Fiocruz e o Butantan estão olhando com um pouco mais de atenção para a necessidade de dominar todo o ciclo”, que vai muito além de envasar e rotular vacinas a partir do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) importado ou com a fórmula licenciada.

Luís Carlos Ferreira - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Luís Carlos Ferreira - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Paulo Lee Ho, do Butantan, acha que, no País, o setor público ainda é quem teria mais condições de fazer esta produção integral. “Nós sabemos fazer a produção do IFA da vacina de influenza, por exemplo, temos toda a cadeia dela no Butantan”, exemplifica, embora a tecnologia empregada tenha sido licenciada, e não desenvolvida integralmente aqui.

Vacinas produzidas na fábrica do Butantan

Vacina Influenza sazonal trivalente (fragmentada e inativada)*
Vacina adsorvida hepatite A (inativada)

Vacina adsorvida hepatite B (recombinante)

Vacina papilomavírus humano (HPV) tipo, 6, 11,16 e 18 (recombinante)

Vacina da Raiva (inativada)

Vacina tríplice bacteriana (DTP) Dupla Adulto (dT) e Dupla Infantil (DT)

Vacina DTPa (para crianças menores de sete anos com efeitos adversos à vacina DTP de células inteiras, ou para reforço ou complementação do esquema da vacina dupla adulta (difteria e tétano), com o objetivo de diminuir a mortalidade de coqueluche em recém-nascidos

*A vacina de Influenza trivalente é a única cujo IFA é fabricado no próprio Butantan, não dependendo de importação para dar andamento nos passos seguintes da fabricação aqui.

Vacinas em desenvolvimento

Vacina da Dengue 1, 2, 3, 4 (atenuada)

Vacina de Influenza H7N9

Vacina de Influenza tetravalente (fragmentada e inativada)
Vacina de Difteria, Tétano e Pertussis

Fonte: https://butantan.gov.br/soros-e-vacinas/vacinas

Mas um problema que já é crônico se mostra, segundo Ho, quando é necessário modernizar e adequar as áreas produtivas às novas regulamentações de qualidade. “O dinheiro para isso não vai vir da venda das vacinas, porque o preço é baixo. E também não temos o recurso público, que deveria ser constante, para ser usado no momento em que estas questões aparecem. Por isso, tivemos que interromper parte da cadeia da produção de muitas vacinas do Butantan na falta de adequações necessárias – os produtos não seriam aprovados pela Anvisa. Ao mesmo tempo, não conseguimos recursos e apoio para atualizar essas plantas”, lamenta Ho, enquanto faz coro à Vecina: “A saúde pública deveria ser vista como algo estratégico para o país”.

Atraso tecnológico prejudica o Brasil na corrida por vacinas

Vacinas produzidas na fábrica da Fiocruz

DTP e Hib

Febre Amarela

Haemophilus influenzae B

Meningite A e C

Pneumocócica 10-valente

Vacina COVID-19 (recombinante)

Poliomielite Inativada 1,2,3

Poliomielite Oral 1,3

Rotavírus Humano

Tetravalente Viral

Tríplice Viral – Sarampo, caxumba e rubéola

Sarampo e rubéola (atenuada)

Fonte: Fiocruz – https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/produtos/vacinas/portfolio-de-vacinas

De acordo com a Fiocruz, a fábrica adquiriu as tecnologias das vacinas de febre amarela; tríplice; Haemophilus influenzae B; meningite AC; além da Covid-19 recombinante (Oxford-AstraZeneca). Com participação brasileira no aprimoramento, o exemplo é a de febre amarela. De acordo com a assessoria de comunicação de Bio-Manguinhos, a Fiocruz estabeleceu a produção da vacina no Brasil em 1937 em parceria com a Fundação Rockfeller, com participação do pesquisador Henrique Penna – que introduziu o sistema de lote-semente, padronizando a produção, assegurando potência adequada da vacina e diminuindo eventos adversos, sistema este posteriormente utilizado por todos os produtores no mundo.

Ainda, segundo a assessoria, atualmente, Bio-Manguinhos possui seis projetos autônomos de desenvolvimento de novas vacinas e, “no momento, os dois em estágio mais avançado são os da dupla viral (sarampo e rubéola), que já foi registrada, e a meningite meningocócica C conjugada”.

Em 2021, Bio-Manguinhos foi selecionado pela OMS como centro para desenvolvimento e produção de vacinas com tecnologia de RNA para Covid-19. A vacina candidata expressa não somente a proteína Spike, mas também a proteína N, para melhor resposta imunológica. Ela será oferecida a membros da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Informações obtidas com a Assessoria de Comunicação da instituição, “Bio-Manguinhos/Fiocruz se comprometeu a compartilhar seu conhecimento para a produção da vacina com demais laboratórios da região, garantindo transferência de tecnologia para ampliar a capacidade produtiva regional.”

CTVacinas: promessa de autonomia

A iniciativa destacada por Luís Carlos Ferreira que vai ao encontro da necessidade de produzir o ciclo todo no País é o Centro de Tecnologia de Vacinas (CTVacinas), polo de pesquisas em biotecnologia ligado à UFMG e que tem parceria com a Fiocruz-Minas, além de manter algumas colaborações com laboratórios da USP e outras instituições.

O professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do CTVacinas, Ricardo Gazzinelli, lembra que não há ainda imunizantes em que a fase 1 tenha sido feita originalmente por instituições brasileiras, ao menos não sem já receber a tecnologia externa. Ele diz que, em geral, somos focados nas fases 2 e principalmente 3, em uma etapa em que a tecnologia já foi desenvolvida por terceiros no exterior e até aprovada por agências regulatórias, o que facilita todo o desenrolar dos processos.

Ricardo Gazzinelli - Foto: CT Vacinas

Ricardo Gazzinelli - Foto: CT Vacinas

“O Brasil tem um ecossistema de vacinas bem completo. Temos a prova de conceito na universidade e institutos de pesquisa; temos muita gente fazendo os ensaios clínicos, principalmente de fase três; temos as fábricas, Butantã e Bio-Manguinhos, que produzem uma grande quantidade de vacinas para o Plano Nacional de Imunizações; e temos o SUS, que funciona muito bem para distribuí-las. O que falta no País é exatamente quem transponha a prova de conceito para os ensaios de fase 1. Para a inovação tecnológica, o que faz mesmo diferença é passar da Universidade para a fase 1”, detalha o professor, ao explicar a principal carência no setor que o CTVacinas tenta suprir.

Ele exemplifica, com exceção da Pfizer, como este elo foi feito para as vacinas da Covid a partir de universidades e instituições públicas, como Oxford, para a Astrazeneca; Harvard, para a Jonhson; e o NIH – National Institutes of Health (agência de pesquisa dos EUA), para a Moderna.

O CTVacinas está em pleno processo de se converter no Centro Nacional de Vacinas, uma espécie de expansão do projeto. “A expectativa é que no máximo em três anos tenhamos uma instituição voltada para dominar toda a cadeia. Aí sim nós poderemos dizer que somos autônomos na produção de vacina”, prevê Ferreira.

Leia a reportagem completa sobre os centros:

CTVacinas: imunizante 100% brasileiro pode abrir portas para outras vacinas nacionais

Recursos humanos

O professor da USP ressalta ainda a importância dos recursos humanos ao se organizar a produção de imunizantes. “Não adianta pensar em estrutura e depois não ter gente preparada para tocar e fazer a coisa funcionar. As duas variáveis precisam caminhar juntas, com a formação de pessoas nas mais diversas áreas que envolvem uma vacina.”

Perguntado se o fenômeno da “fuga de cérebros” é uma realidade também no setor, Ferreira assente. “Eu diria que isso se acelerou nos últimos 3 ou 4 anos, porque a oferta de emprego para quem trabalha com imunobiológicos, e na pesquisa científica em saúde de modo geral, caiu tremendamente. Quem absorvia esses profissionais eram as próprias universidades e centros de pesquisa. Com a redução das contratações, houve uma verdadeira enxurrada de cérebros saindo do Brasil.”

Ele chama atenção para que não se confunda isso com o fato de pesquisadores formados aqui passarem um tempo no exterior, “o que é muito importante e saudável”, e depois retornarem para o país. “No momento, vejo que há uma saída [dos pesquisadores] sem esse planejamento de trazer o conhecimento de volta para aplicar aqui”, diz Ferreira.

“No nosso país é muito difícil de se alcançar, como pesquisador, um patamar de segurança e estabilidade, então acabamos perdendo muita mão de obra qualificada para fora mesmo”, concorda a pesquisadora do CTVacinas Natália Salazar.

Ela exemplifica com a experiência que o centro está adquirindo com a vacina em desenvolvimento para a covid-19: a Spintec. “Tivemos uma reunião com a Anvisa e precisávamos de um profissional para fazer as estatísticas dos estudos clínicos, e foi muito difícil achar uma pessoa com essa experiência disponível. Nós também temos que realizar testes muito específicos de tecnologia e temos uma equipe reduzida, que precisa ser expandida com especialistas nessa área, mas temos dificuldades de encontrá-los”, diz a cientista.

Natália Salazar - Foto: CT Vacinas

Natália Salazar - Foto: CT Vacinas

Ferreira crê que as instituições de ensino necessitam se aproximar mais das empresas e vice-versa. “As universidades e centros de pesquisa detêm o conhecimento sobre pesquisa básica relacionada ao desenvolvimento de vacinas. Tal conhecimento precisa ser transferido e adaptado pelas empresas, que têm a capacidade de gerar os produtos. E esse pessoal formado que parte para o exterior e não volta poderia ser contratado pelas indústrias farmacêuticas no Brasil”.

*Esta reportagem faz parte de um especial realizado em convênio do Jornal da USP com a Agência Bori, no âmbito do Programa Infovacina Trainee

Continue para as partes 3 e 4 e leia também a parte 1:


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