Caso Sintex: como a saída de uma empresa privada impulsionou o investimento público na produção de vacinas no Brasil

Reportagem especial em quatro partes aborda os desafios de fazer vacinas no Brasil. Nesta matéria, saiba como, nos anos 1980, fechamento de laboratório privado responsável por imunobiológicos utilizados no País motivou a criação da política que fortaleceu instituições como Butantan e Fiocruz

 16/11/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 18/11/2022 às 16:50

Bernardo Yoneshigue, Júnior Moreira Bordalo e Milena Hildete,
com supervisão e edição de Luiza Caires*

Para entender a nossa capacidade de produzir imunizantes em condições de excelência, nas instituições públicas como o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é preciso voltar no tempo. Nos anos 1980, a saída do Brasil de um laboratório particular que produzia a maior parte dos imunobiológicos utilizados deixou clara a dependência da iniciativa privada para garantir a vacinação dos brasileiros. O cenário motivou a criação do Programa de Auto-Suficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni), que mudaria a forma como o País atende às altas demandas para as campanhas nacionais de imunização dali em diante.

Essa história teve início ainda em 1973, logo após a erradicação da varíola no Brasil, com a criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), uma das maiores iniciativas do mundo destinadas à vacinação. O programa foi institucionalizado dois anos depois, em 1975, por meio da Lei nº 6.259. Na época, foi um marco no empenho do poder público em ampliar a proteção dos brasileiros contra os agentes infecciosos.

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Alguns anos depois, em 1981, o País deu mais um passo nesse sentido com a criação do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), vinculado à Fiocruz, que passou a aplicar normas mais rígidas para fortalecer o controle de qualidade dos imunobiológicos que chegariam até a população. Embora celebrada pelos especialistas, a fundação do INCQS levou a uma crise no fornecimento de vacinas e soros no Brasil.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Isso porque a maioria das unidades utilizadas no Brasil eram fabricadas por uma multinacional privada chamada Sintex, que teve linhas de produção fechadas pelos órgãos públicos durante a fiscalização sanitária. Em vez de adaptar a cadeia produtiva às exigências da época, o laboratório preferiu deixar o País, o que evidenciou a dependência da iniciativa privada no setor.

“Ficamos sem imunobiológicos nesse período, principalmente soros antiofídicos. E soros são uma coisa que você não consegue comprar de outro país, pois tem uma especificidade relativa às serpentes, que são muito locais. E os produzidos aqui não tinham qualidade. O setor privado – que era o responsável, já que o principal produtor na época era a Sintex – simplesmente decidiu não mais produzir porque não valia a pena fazer adequação da planta, devido ao alto custo”, explica o pesquisador do Núcleo de Vacinas do Butantan Paulo Lee Ho, ex-diretor da Divisão de Desenvolvimento Tecnológico e Produção do instituto.

Paulo Lee Hoo - Foto: Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)

Paulo Lee Hoo

Para contornar a necessidade de importação dos imunobiológicos, em 1985 o Ministério da Saúde decidiu investir de forma pesada na produção nacional de imunizantes e soros. Com isso, foi criado o Programa de Auto-Suficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni), que direcionou financiamento para alavancar a capacidade produtiva do Butantan e da Fiocruz, além de outros laboratórios menores, como a Fundação Ataulfo de Paiva, no Rio de Janeiro, que era o único produtor nacional da vacina da BCG, mas recentemente teve a produção suspensa por falta de readequações.

Foto: Instituto Butantan

O Pasni foi o responsável por levar o País, com o tempo, a dominar a produção de imunizantes e de fato deixar de depender da importação de outros lugares. Nos últimos dez anos, por exemplo, mesmo com uso de tecnologia e alguns insumos estrangeiros, a maior parte das vacinas entregues ao PNI foi fabricada no Butantan e na Fiocruz. Além disso, em meio à pandemia da covid-19, foram eles também os responsáveis por garantir a fabricação nacional de importantes vacinas utilizadas na campanha, a CoronaVac e a ChAdOx1-S (Oxford/AstraZeneca), que teve o ingrediente farmacêutico ativo (IFA) licenciado e, desde fevereiro já é completamente fabricado em Manguinhos.

*Esta reportagem faz parte de um especial realizado em convênio do Jornal da USP com a Agência Bori, no âmbito do Programa Infovacina Trainee

Continue para a parte 4 e leia também as partes 1 e 2:


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