Da concepção ao envase: o Brasil pode desenvolver as próprias vacinas?

Reportagem especial em quatro partes aborda os desafios de fazer vacinas no Brasil

 16/11/2022 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 06/12/2022 as 9:16

Bernardo Yoneshigue, Júnior Moreira Bordalo e Milena Hildete,
com supervisão e edição de Luiza Caires*

A pandemia de covid-19 mostrou que o Brasil tem capacidade de fabricar ao menos parte das próprias vacinas, com o protagonismo da Fiocruz e do Butantan. A mesma pandemia, porém, também escancarou que essa produção depende de ciência e tecnologias externas: nenhum dos imunizantes usados até agora contra a doença foi integralmente feito no Brasil, ou seja, das primeiras etapas de pesquisa ao envase.

A dependência estrangeira não é realidade apenas para as vacinas contra o coronavírus: nenhuma das aplicações já ofertadas no País, seja contra o tétano, a hepatite, a pólio ou o sarampo, entre outras, foram desenvolvidas aqui – embora haja projetos caminhando para isso. Se a autonomia na área traria vantagens estratégicas, num mundo globalizado em que crises causam efeito dominó no mercado e no abastecimento, os últimos governos não parecem tê-la visto como prioridade. Muitos dos entraves no setor, defendem especialistas, poderiam ser solucionados com mais empenho político e investimento público.

Mas, realisticamente, até onde poderíamos ir no desenvolvimento e fabricação de vacinas nacionais? Nesta reportagem especial em quatro partes, buscamos apresentar um panorama nacional do setor; o que já se faz e no que ainda esbarramos, entendendo quais são os entraves para avançarmos. E, em última análise, procurando responder: podemos ser um pouco menos dependentes de importação da tecnologia quando o assunto são vacinas?

Do projeto ao produto

Primeiro é preciso diferenciar fabricação de desenvolvimento. Desenvolver um imunizante é quando os pesquisadores de fato criam a fórmula do zero. Começa nas instituições científicas, com a análise de quais tipos de tecnologias podem ser usadas, e com quais materiais biológicos, para induzir o sistema imune a produzir as defesas contra um agente causador de doenças. Na etapa seguinte, são conduzidos os primeiros testes, ainda em laboratório, chamados de pré-clínicos. Em caso de resultados positivos, eles seguem para os estudos clínicos de fase 1, 2 e 3, em humanos, que atestam a segurança, a capacidade de gerar uma resposta imunológica e, ao final, a eficácia em grandes grupos populacionais. Depois, se comprovada a capacidade de induzir à proteção, aquela formulação está pronta e pode ter o aval para aplicação na população solicitado às agências reguladoras.

Quando uma vacina foi desenvolvida e aprovada, chegamos ao próximo passo: a fabricação em larga escala para venda e distribuição. Ela pode ser feita pelo próprio centro que criou a fórmula, e pode também ser licenciada por meio de acordos para que outras fábricas detenham o direito de produzir aquela fórmula e comercializá-la. É o que fazem muitas fábricas de imunizantes, usando tecnologia externa.

Como exemplo de excelência na fabricação aqui no Brasil, temos a planta de Bio-Manguinhos, da Fiocruz. Quem indica é o médico sanitarista Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, ex-diretor da Anvisa e com décadas de atuação no setor de imunizantes. “Bio-Manguinhos é certificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e faz uma vacina de febre amarela que é vendida para o mundo inteiro”, relata. “Além desta e de outras vacinas, a instituição também faz muitos itens para diagnóstico. E Bio-Manguinhos tem uma coisa fantástica, que é unir a fábrica à ciência”, diz, ao lembrar que a Fiocruz é uma instituição de pesquisa com cientistas continuamente estudando o que está sendo produzido, além de ter projetos próprios de desenvolvimento de vacinas e outros imunobiológicos em andamento.

Fotos: Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos)

Em São Paulo, ele cita o Butantan como referência. A produção de maior volume, segundo o médico, é a do imunizante da gripe (influenza), mas ele destaca ainda a vacina do HPV, vírus causador do câncer de colo de útero. “E lá também há essa característica de que, ao lado da fábrica, há o instituto de pesquisa”, diz. Além da produção com tecnologias licenciadas, o Butantan também trabalha na criação de vacinas próprias.

Além desses dois casos de sucesso, Vecina lembra outros não tão animadores. “O Vital Brazil, que é uma instituição muito antiga no Rio de Janeiro, está praticamente paralisado. Temos ainda a Fundação Ezequiel Dias, em Minas Gerais, infelizmente outra numa situação de grande dificuldade.” Ele cita ainda o caso da Fundação Ataulpho de Paiva, instituição privada sem fins lucrativos sediada no Rio de Janeiro, responsável no Brasil pela produção da BCG, a vacina contra tuberculose. “A Fundação suspendeu a produção por falta de investimento em renovação das condições da fábrica”, lamenta Vecina, o que levou o País a depender da importação dos imunizantes prontos por meio da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) para não interromper a aplicação.

Professor Gonzalo Vecina Neto - Foto: FSP/USP

Todo esse desmonte soa muito triste e leva ao questionamento se, na ponta do lápis, compensaria mesmo o País ter como objetivo fazer de forma completa as vacinas aqui – em vez de apenas importá-las prontas ou os ingredientes e licenças para produzi-las e envasá-las. Vecina acredita que valeria a pena sim investir em fazer tudo por aqui. Perguntado sobre os diferenciais de não depender tanto de importação, ele responde: “É ter certeza de garantir o fornecimento desses produtos para a população brasileira. Existe inclusive a possibilidade, se adequadamente planejada como política pública, de que o País possa se transformar em um player mundial, competindo com a Índia. ‘Ah, mas os indianos têm uma escala em que é impossível competir’, podem dizer. Depende dos instrumentos que utilizaremos para participar dessa competição. Existe a possibilidade de atender países vendendo uma vacina com um preço competitivo e até participar de ações ligadas à OMS para entregar imunizantes em países mais pobres. O mundo é globalizado, não pode ser encarado em ilhas.”

Foto: Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos)

Neste sentido, mesmo um representante da indústria farmacêutica que não concorda que devemos ter como meta instalar grandes plantas (inclusive privadas) no Brasil, diz que podemos ao menos ter um papel regional. “Falar que o Brasil trará plantas só por trazer não é sustentável. As plantas que temos hoje [no mundo] são suficientes para atender à necessidade global”, defende Eduardo Calderari, presidente-executivo da Interfarma, entidade que reúne fabricantes de produtos farmacêuticos. “Temos grandes polos nos Estados Unidos, Europa e Ásia, principalmente na China e no Japão. Talvez não devesse ser uma prioridade nossa competir com estas plantas já instaladas. Mas se queremos tornar o Brasil importante no cenário, poderíamos focar em uma estratégia mais regional, com o Brasil virando um hub para a América Latina, por exemplo”, sugere Calderari.

A Fiocruz, por exemplo, trabalha no desenvolvimento de uma vacina de RNA mensageiro para a covid, ainda em estágio preliminar, que pode vir a ser distribuída ou ter a tecnologia licenciada para países da Organização Pan-Americana de Saúde.

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Produzindo vacina: o desafio de dominar o ciclo todo

Voz dissonante, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mauro Schechter acha que não vale a pena investirmos em parques nacionais para desenvolvimento de vacinas. Para ele, o custo é muito alto, e o País deve investir em outras prioridades como, por exemplo, “zerar a fila do SUS”.”Com recursos limitados, o País tem que definir para onde vai destinar seu dinheiro. Temos um número enorme de pessoas passando fome; um analfabetismo funcional grande. Acho que as necessidades são outras. Cada vacina que a gente fosse tentar fazer seria gasto muito recurso. Para que competir com quem tem [outros países] muito mais dinheiro que você?”, indaga o médico.

Ficando para trás

Para o pesquisador do Núcleo de Vacinas do Butantan Paulo Lee Ho, o cenário do Brasil tem avanços e retrocessos. O problema, segundo ele, é a baixa velocidade com que avançamos comparativamente aos países mais desenvolvidos. “Em velocidade relativa, a gente acaba ficando para trás.” O que limita esta velocidade, de acordo com Ho, é a falta de apoio, que se mistura à carência de investimento em um problema só – e que é estrutural.

“Só temos investimento maior em momentos de crise, como a pandemia”, queixa-se Ho. Para ele, esse investimento pontual torna difícil tanto resolver a crise da vez com rapidez quanto avançar numa produção contínua de outras vacinas.

Paulo Lee Ho - Foto: Arquivo pessoal

Tão importante quanto o investimento, diz ele, é o apoio político. “Muitas das decisões hoje, dependendo da esfera que você examinar, têm um ranço político muito grande, quando a população seria melhor atendida com uma decisão técnica”, diz, referindo-se aos problemas que o Instituto Butantan enfrentou ao negociar com o governo federal na pandemia.

Produção de vacina - Foto: Divulgação/Fundação Oswaldo Cruz

Política de Estado

Paulo Lee Ho acredita que o Brasil carece de uma política de Estado para o setor. “Algumas políticas foram muito bem estabelecidas nas décadas de 1970 e 80, e são essas que estão nos segurando. Mesmo assim, hoje, nem sempre essas diretrizes são implementadas, obedecidas ou mesmo entendidas.”

Para conhecer um pouco deste histórico, veja:

Caso Sintex: como a saída de uma empresa privada impulsionou o investimento público na produção de vacinas no Brasil

Gonçalo Vecina segue na mesma linha, ao dizer que “os últimos governos tiveram uma visão muito utilitarista de olhar exclusivamente do ponto de vista financeiro a questão sobre ‘desenvolver e produzir vacinas ou comprar fora do Brasil’. Em nenhum momento essas gestões pensaram em tornar o País autossuficiente”, afirma. Para o ex-diretor da Anvisa, pensando só em custo, deixa-se de considerar o problema que é depender totalmente de vacinas importadas para atender a um mercado do tamanho do brasileiro. “Tem que ter um pouco mais de inteligência estratégica. Entendo, por exemplo, um país pequeno como o Uruguai não desenvolver e produzir suas vacinas, mas um país do tamanho do Brasil não pode abrir mão dessas coisas.”

A fala do médico sanitarista ganha corpo se pensarmos num mundo em que guerras, pandemias, crises diplomáticas e até energéticas muitas vezes resultam em desabastecimento, que também atinge insumos médicos e produtos imunobiológicos como as vacinas.

Além disso, há interesses divergentes em relação a para quais doenças serão desenvolvidas novas proteções: países mais avançados na criação de imunizantes, como Estados Unidos, podem não enxergar com tanta atenção patologias mais prevalentes em outras partes do mundo, como é o caso das doenças tropicais que afetam o Brasil.

*Esta reportagem faz parte de um especial realizado em convênio do Jornal da USP com a Agência Bori, no âmbito do Programa Infovacina Trainee

Continue para as partes 2, 3 e 4:


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