A Rede de Pesquisa Solidária realizou minucioso levantamento dos dados de UTI registrados nas plataformas públicas do Ministério da Saúde (MS) e de 26 secretarias estaduais de saúde, além do Distrito Federal. As informações colhidas sobre o número de leitos de UTI para covid-19 disponíveis e ocupados apresentam lacunas e disparidades enormes, cuja falta de transparência impede uma avaliação precisa da capacidade de atendimento da população e da oportunidade de medidas de flexibilização que estão atualmente em curso.
De acordo com o levantamento da rede, leitos de UTI são essenciais para salvar vidas durante a pandemia. O conhecimento preciso de seu número e de ocupação real é fundamental para a definição de políticas públicas de combate ao coronavírus, a exemplo da ampliação de unidades hospitalares, das medidas de distanciamento social e de sua eventual flexibilização. As taxas de ocupação de leitos de UTI para covid-19 representam o elo final da possibilidade de colapso do sistema de saúde no atendimento aos pacientes em quadro clínico severo, o que significa, em última instância, a identificação da capacidade da rede de atendimento preservar vidas que atingiram estado crítico de saúde.
A Rede Pesquisa Solidária acompanhou as informações referentes à disponibilidade, acesso e ocupação dos leitos de UTI nos Estados brasileiros, considerando a disponibilidade de leitos de UTI anterior à pandemia; a demanda adicional em virtude dos pacientes graves infectados pelo novo coronavírus; e o acréscimo e monitoramento de leitos de UTI realizados pelos gestores públicos desde o dia 1º de março. As conclusões do levantamento são detalhadas em uma Nota Técnica, coordenada por Tatiane C. Moraes de Sousa, da Fundação Oswaldo Cruz, José Eduardo Krieger, do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), e Lorena Barberia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com participação de Luciana Sarmento Garbayo (University of Central Florida e Fiocruz), Mariane de Vasconcelos Caetano (mestranda, Fiocruz), Renata Breves (doutoranda, Fiocruz) e Pedro Schmalz (graduando, FFLCH).
Ouça entrevista do professor José Eduardo Krieger ao Jornal da USP no Ar:
Desencontro de dados
Não há informação clara sobre o número de leitos de UTI Covid-19 disponíveis no território nacional. As diferenças entre os dados apresentados nas plataformas oficiais são enormes e chegam, por exemplo, a 200%, quando se compara os registros da Plataforma Covid-19 e os do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, referentes a maio de 2020.
Dois Estados brasileiros, Rio de Janeiro e Tocantins, não apresentaram nenhuma informação sobre o número de leitos de UTI Covid-19 em suas plataformas, sendo que o Rio de Janeiro está entre os cinco Estados brasileiros que exibem a maior taxa de mortes causadas pelo novo coronavírus até o momento. Somente cinco Estados apresentam o número de leitos de UTI para covid-19 do SUS e também do sistema privado: Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo e Sergipe. Apenas sete Estados apresentam a taxa de ocupação em tempo real dos leitos de UTI Covid-19 do Sistema Único de Saúde em todas as unidades gerenciadas pelas Secretarias Estaduais: Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Santa Catarina e Sergipe.
A ausência de informações sobre leitos de UTI para covid-19 se verifica em Estados considerados epicentros da pandemia no Brasil, como Amazonas e São Paulo. A plataforma do Amazonas apresenta somente o número de leitos ocupados, o que não permite estimar a taxa de ocupação. São Paulo apresenta somente a taxa de ocupação sem distinção entre os leitos de UTI para covid-19 do SUS e os leitos da rede privada.
Diversos arranjos têm sido adotados por gestores públicos para o aumento do número de leitos de UTI durante a pandemia, como o aumento no número de leitos contratados de hospitais e redes privadas e a criação de hospitais de campanha, com aquisição de novos equipamentos e materiais. Considerando os poucos dados disponíveis atualmente nas plataformas de acesso público, não é possível identificar quais ações foram tomadas pelos Estados e tampouco o custo e a efetividade das aquisições realizadas.
A inconsistência generalizada dos dados de UTI sugere que as sinergias entre o sistema público e o privado não estão sendo plenamente exploradas. E levantam também dúvidas relevantes quanto à eficiência das políticas em execução.
Se os governos têm nas informações divulgadas ao público uma referência séria, é preciso observar o enorme descompasso entre esses dados, as estimativas de capacidade de atendimento aos doentes em estado agudo e os planos de flexibilização em curso atualmente. Quando os dados apresentados não têm o rigor necessário para fundamentar as políticas de contenção da crise, a população está sendo orientada para respeitar decisões que se baseiam em fontes desconhecidas de informação ou conhecidas apenas pelos governos.
Nas duas alternativas, a compreensão, o julgamento e a adesão da população estão prejudicados. O prejuízo da falta de informação para o público é grande, com implicações para o atendimento tanto dos contaminados pela covid-19 quanto para a continuidade do tratamento contínuo das demais doenças.
O caso de São Paulo
Os dados de São Paulo referentes aos leitos de UTI para covid-19 são consolidados pela Fundação Seade, que atualiza diariamente a taxa de ocupação desses leitos para todas as 18 regiões de saúde do Estado. Embora seja positivo apresentar a taxa de ocupação de leitos de UTI para todas as regiões, além da taxa geral de ocupação do Estado, as informações não estão desagregadas de acordo com o sistema de saúde gestor, ou seja, não é informado se esses leitos são do SUS ou de redes e hospitais privados. Isso significa que não é possível afirmar se a população de São Paulo não usuária da rede privada de saúde possui acesso garantido aos leitos da rede pública, ou se esses hospitais já se encontram saturados.
As informações sobre a origem e a gestão de leitos de UTI para covid-19 são especialmente importantes. De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) do MS, o Estado de São Paulo possuía em abril de 2020, 3.382 leitos de UTI para covid-19, sendo que apenas 32% são gerenciados pelo SUS. Na cidade há uma maior proporção de leitos de UTI para covid-19 do SUS do que o encontrado no Estado (41%). Assim, é possível verificar que há uma parcela maior da população do Estado de São Paulo dependente do serviço público de saúde, em comparação com a cidade de São Paulo. Porém, a população do estado, proporcionalmente, possui menor disponibilidade de leitos SUS de UTI (CNES, 2020).
A comparação entre os leitos de UTI para covid-19 no Estado de São Paulo e na cidade de São Paulo expõe a diferença de informações apresentadas pelas secretarias de saúde do Estado e do município. Ao contrário do Estado, a Secretaria de Saúde do município de São Paulo apresenta as informações referentes ao número de leitos de UTI ocupados e vagos, além da taxa de ocupação. Enquanto o Estado disponibiliza somente a taxa de ocupação de leitos de UTI, sem diferenciar os leitos sob gestão do governo do Estado e o número de leitos existentes e ocupados.
A falta de informação rigorosa sobre as taxas de ocupação dos leitos de UTI de covid-19 pode também ser encontrada nas elevadas taxas de morte por covid-19 no Estado e no município de São Paulo no mês de maio. A taxa aumentou significativamente durante o mês de maio, embora este crescimento tenha apresentado menor intensidade do que o registrado na cidade de São Paulo, que apresentou uma taxa de crescimento médio diário de 0,7, enquanto que no Estado foi de 0,4 no mesmo período (maio de 2020).
Embora a taxa de mortes na cidade de São Paulo tenha sido superior no mês de maio, em comparação com o Estado, o mesmo não ocorreu com a taxa de ocupação de leitos de UTI Covid-19 e para a taxa de pacientes com a doença internados em UTI, uma vez que as maiores taxas de ocupação e internação foram encontradas no Estado, como ilustrado na Figura 4.
Confiança e transparência
De acordo com a Nota Técnica, o desencontro e a inconsistência de dados dificultam a elaboração, a execução e a avaliação das políticas públicas pela sociedade. Essa situação é ainda mais grave quando o mundo e o Brasil enfrentam um dos vírus mais letais dos últimos 100 anos, um vírus que desafia os imensos avanços que a ciência e a tecnologia viabilizaram em favor da saúde humana. Pelas plataformas oficiais, a sociedade brasileira não tem condições de compreender plenamente as medidas que as autoridades e gestores públicos tomam e que respondem por profundos impactos na vida da população, a começar pelo distanciamento social e as distintas fases de sua flexibilização.
Mais ainda, o desacerto e a presença de dados discrepantes impedem que a população compreenda a importância e o benefício das políticas públicas. Somados à falta de coordenação entre o governo federal, estados e municípios, é possível identificar algumas das razões que explicam a lentidão e a oscilação dos processos decisórios, assim como a baixa adesão da população a muitas das determinações oficiais. Sem dados confiáveis e sistemas transparentes dificilmente haverá políticas públicas de qualidade, concluem os autores da nota.
A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas. O alvo é melhorar o debate e o trabalho de gestores públicos, autoridades, congressistas, imprensa, comunidade acadêmica e empresários, todos preocupados com as ações concretas que têm impacto na vida da população. Trabalhando na intersecção das Humanidades com as áreas de Exatas e Biológicas, trata-se de uma rede multidisciplinar e multi-institucional que está em contato com centros de excelência no exterior, como as Universidades de Oxford e Chicago.
A coordenação científica está com a professora Lorena Barberia (FFLCH). No comitê de coordenação estão: Glauco Arbix (FFLCH e Observatório da Inovação), João Paulo Veiga (FFLCH), Graziela Castello (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap), Fábio Senne (Nic.br) e José Eduardo Krieger (Incor). O comitê de coordenação representa quatro instituições de apoio: o Cebrap, o Observatório da Inovação, o Nic.br e o Incor. A divulgação dos resultados das atividades será feita semanalmente através de um boletim, elaborado por Glauco Arbix, João Paulo Veiga e Lorena Barberia. São mais de 40 pesquisadores e várias instituições de apoio que sustentam as pesquisas voltadas para acompanhar, comparar e analisar as políticas públicas que o governo federal e os Estados tomam diante da crise.
As outras notas estão disponíveis neste link.