Ucrânia: o teatro, a tragédia e as formas de representação

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 08/03/2022 - Publicado há 2 anos
Janice Theodoro da Silva – Foto: Reprodução/Youtube

 

A guerra na Ucrânia tomou conta do noticiário.

Que mundo é este?

Analistas especializados em relações internacionais discutem a invasão da Ucrânia. A análise da conjuntura atual envolve temas como a violação à integridade territorial, o desrespeito à soberania de um país e a posição estratégica da Ucrânia com relação à Rússia. Do ponto de vista estrutural, a matéria é vasta, diz respeito ao funcionamento da economia de mercado, às fragilidades dos regimes democráticos, ao fortalecimento da extrema direita, à presença de grupos neonazistas e à cultura do ódio. As consequências apontam para um novo desenho do equilíbrio mundial. Otimistas imaginam um mundo mais verde e os pessimistas consideram trágicas as consequências de um conflito entre potências, detentoras de armas nucleares, capazes de pôr fim à vida no planeta.

As interpretações sobre a guerra são variadas. Dependem de interesses políticos, econômicos e tecnológicos dos países envolvidos, com papel importante o uso das novas tecnologias. O que é novo na conjuntura atual? A tecnologia, as formas de comunicação, a concepção de tempo, a negação da política e o ódio como instrumento político. O que mudou? A maneira de se conceber, conviver e fazer política. Ontem e hoje.

O século 21, especialmente o Ocidente industrializado, desenvolveu um modelo de “civilização” baseado na ideia de progresso, na utilização intensiva dos recursos naturais e desenvolvimento de diversas fontes de energia, renováveis e não renováveis. A industrialização criou melhores condições de vida para uma parte da população, aumentou a desigualdade, produziu tecnologia, aprofundou o conhecimento científico, transformou e destruiu, ao mesmo tempo, o planeta. A combinação dessas variáveis favoreceu a entrada de milhões de pessoas na sociedade de consumo. Sonhos e ambições, seguidos de fracasso, fruto da pequena mobilidade social, empregos precários e indiferença diante das demandas sociais. O resultado foi frustração e sentimento antipolítica. A esperança veio dos avanços tecnológicos, um novo espaço midiático capaz de gerar um instante de glória, semelhante àquele oferecido pela loteria. Esperança de obter muitos cliques, enriquecer e sair do anonimato.

A relação entre sonho e realidade, entre a defesa de um projeto político e sua realização, entre a sofisticação do consumo e a possibilidade de consumir minou o vínculo entre a ideia de um projeto de vida melhor e a sua possibilidade de realização. A isto se deu o nome de desencantamento do mundo ou fim das utopias. O tempo futuro (projeto) perdeu importância, e o tempo presente ganhou espaço.

A Guerra Fria foi um período marcado por uma política de formato tradicional pautado pelo ideário da Revolução Francesa, com propostas de mais igualdade, mais ciência e mais progresso. Do ponto de vista político vigoravam as máximas de Maquiavel, contidas no seu livro O Príncipe. A ideia central, repetida até os dias de hoje, dizia respeito à separação, na política, entre Ser e Estar. Maquiavel afirmava em seus escritos que o príncipe não precisava ser bom, mas deveria aparentar bondade, caso fosse necessário. Aparentar e ser, segundo ele, expressavam condições distintas no exercício do poder, assim como a separação entre os meios e fins mantendo a clareza dos objetivos.

Estes são os pontos de partida do pensamento político moderno.

O que mudou com o fim das utopias e o desencantamento do mundo? A fragilização da relação entre Ser e Estar, entre o fato e a sua representação.

O que alterou esta relação? Consideremos uma hipótese:

As fake news tiveram papel importante na vida política ao interferir nos conceitos básicos do funcionamento dos regimes democráticos. A nova modalidade de “mentira” interferiu na razão, com seus necessários desdobramentos: desmobilizando a retórica argumentativa, desqualificando os métodos científicos, fragilizando a relação entre fatos e suas diferentes formas de interpretação. Exemplos: a recusa à vacina, comprovando a crise da razão e do método científico; a negação do Holocausto, exemplificando a separação entre o fato e os significados políticos, por meio da exclusão da memória histórica comprovada; e a manipulação de pessoas nas redes (algoritmos), demonstrando como as novas formas de comunicação podem diluir a relação entre um objeto e suas formas de representação, interpretação, seus sentidos.

O teatro e seu significado político

Dentre as maravilhas pensadas e praticadas pelos gregos, lembramos sempre de destacar o surgimento da democracia. O teatro grego é lembrado e analisado em separado da política embora seja ele, o teatro, o passo necessário para viabilizar a política como forma de representação. Jean-Pierre Vernant, no livro Entre Mito & Política, lembra que “… do ponto de vista institucional” ocorre “um fenômeno muito interessante: o mesmo tipo de instituição, de funcionamento, de mentalidade preside à vida política e à organização do que chamamos de espetáculo, representação, divertimento”. Resumindo, a política nasce com o teatro.

Qual a relação entre as fake news e o teatro grego?

As fake news dissolvem a relação entre o fato e suas formas de representação, separam a realidade da ficção, distanciamento necessário na arte da política. Eu não quero que o Holocausto tenha ocorrido, eu digo que ele não existiu. Não me interessam as provas existentes. O imediatismo da mensagem e a ausência de significado do fragmento no contexto tornam o receptor-emissor da mensagem passivo. O receptor visualiza a imagem ou mensagem, clica se gostou ou não e muda de página. Não existe a perspectiva de discussão ou compreensão do significado da imagem ou da mensagem na circunstância e na história. O espaço do debate, do sentido das coisas foi desmobilizado, as interpretações, desprezadas, as relações de causa e efeito, dissolvidas entre o fato e sua significação. O mundo virtual envolve um pacto entre o emissor da mensagem, consciente do simulacro, e o receptor também ciente do simulacro, indiferente ao caráter de verdade ou mentira. Cooptado o receptor, educado na cegueira da rede, ele não tem interesse nos significados ou consequências, pessoal ou política, com a inserção daquela imagem ou mensagem em um determinado contexto. Importa apenas o impacto do fragmento selecionado, o número de cliques obtidos.

Mentiras e fake news

As fake news atuais não são exatamente iguais às mentiras utilizadas na Primeira e na Segunda Guerra Mundial.

É importante compreender as semelhanças e as diferenças. A mentira é arma de guerra conhecida desde a antiguidade. Basta lembrar do cavalo de Troia. Os objetivos e interesses tanto na Guerra de Troia como na Primeira ou na Segunda Guerra Mundial são evidentes e conhecidos.

Qual a diferença?

Na guerra a informação falsa, a mentira, serve para enganar e animar as tropas em combate sugerindo vitória onde a derrota é o mais provável. A mentira serve a um objetivo político conhecido, ponto de vista geral, por aqueles que participam da guerra ou acompanham, pelos meios de comunicação, a guerra. Tanto de um lado como de outro os combatentes utilizam o mesmo instrumento, a mentira, para alcançar seus objetivos: a vitória. Mas, atenção, no modelo antigo da Primeira e Segunda Guerras os atores envolvidos na contenda, as nações, possuíam projetos políticos de futuro diferenciados e explícitos em seus programas de governo, de centro, de direita ou de esquerda. As táticas poderiam, de ambos os lados, envolver mentiras.

As fake news utilizadas nas redes para combater, por exemplo, a vacinação envolvem o silenciamento dos objetivos. Este é o seu lugar de força. Elas atuam politicamente de forma instrumental, dissimulando o sentido político da ação, tornando visível apenas um fragmento de impacto, um instantâneo difundido na rede. Por exemplo: impedir ou dificultar a vacinação, defender o voto impresso, difundir o uso de armas. Frases de efeito e o uso de metáforas são instrumentos importantes de linguagem, por exemplo, “deixar a boiada passar”, “a montanha pariu um rato”, entre outras, ou ainda, ações espetaculares como fogos contra o STF. O pressuposto, o sentido político mobilizador das ações fragmentárias não são explicitados em seus objetivos e finalidades.

A força das fake news é ser fragmento.

Por que proliferam tanto?

Porque paira no ar um mal-estar civilizacional. Este é o campo de atuação dos divulgadores de mentiras. A mobilização, relativamente fácil, em torno das inverdades tem origem nos sentimentos de desacerto com o mundo em que se vive. Um mal-estar na cultura, ódio ao supor a possibilidade de igualdade com a base da pirâmide social. Criticam a desordem, a indisciplina, defendem a hierarquia e expressam vontade de obedecer a um protetor-chefe cuja proximidade, a aderência os qualifique. Idealizam o líder como se fosse um comandante de tropas. Desenho típico da obediência em campo de batalha. Apenas o chefe sabe o lugar onde se pretende chegar. A razão é substituída pela obediência, de preferência, cega. Preside este grupo o desejo da cegueira.

A peça Hamlet, de Shakespeare, é clara ao explicitar o conceito de representação e sua importância na luta pelo poder. Uma companhia de atores escolhida pelo príncipe Hamlet representa, para os assassinos de seu pai, a cena do crime cometido. Gertrudes, rainha da Dinamarca, e Claudio, tio de Hamlet, em disputa pelo poder, matam o rei para ocupar o trono. Ambos, Getrudes e Claudio, assistem à peça de teatro, à representação cenográfica do crime, dando início a uma série de conflitos de desfecho trágico. Existe o fato, o assassinato do Rei, e existe a escolha pela representação do fato, no palco, com atores em cena. A intenção é denunciar, fazer ver o que estava no escuro.

O que ocorre, agora, com a guerra na Ucrânia?

Ocorreu uma junção estratégica entre a comunicação instantânea nas redes, a política em âmbito nacional e internacional (com significados contidos na história de longa e curta duração, como ocorreu anteriormente nas duas guerras) e a presença de um comunicador com habilidade nas artes de representação. Um comunicador, um ator, passou a explicar para o mundo as razões locais da guerra, os interesses internacionais envolvidos no conflito e a importância da política, único instrumento capaz de diminuir o sofrimento de milhões de pessoas. A política, tão depreciada na atualidade, foi posta em cena por meio da tragédia ucraniana. Um fragmento inserido na história com começo, meio e fim. O coro das nações em dissonância com os interesses de Putin expressa em todos os meios de comunicação, em tempo real, posições políticas nacionais e internacionais demonstrando a importância da política para a sobrevivência de todos, pessoas, animais e vegetação.

Vamos resgatar os gregos e, com eles, a arte da política.

Ucrânia

Hoje temos um comediante gerindo um conflito cujas consequências envolvem o planeta. Venceu as eleições (mais de 70% dos votos) com um partido cujo nome era igual ao de seu programa na televisão. Não pretendo subir na tribuna para julgar, nem disponho de informações suficientes para avaliar passo a passo a história da Ucrânia e seu atual presidente. Acompanho a dor de milhares de famílias. Já senti fome, já tive medo, já estive diante de uma arma e de um tiro. Não é fácil. Também avalio o peso da decisão de um presidente ao assumir um papel onde o risco de vida é evidente, onde aliados e inimigos possuem os seus próprios interesses, onde a philia, a amizade como diziam os gregos, anda em crise.

Tenho algo a dizer?

Sim.

O teatro, o cinema, a televisão, os antigos e novos meios de comunicação, a cultura em geral constituem a política na sua essência. A tragédia representada por atores no palco foi um gênero utilizado pelos gregos para fazer ver, desencobrir histórias de poder, riqueza e misérias humanas. Uma forma da cidade grega aprender a arte da política. Mais do que isto, ainda segundo Vernant, a representação é “a face teatral que a cidade adota para expressar-se frente aos cidadãos”.

Os homens contemporâneos, amantes incondicionais das novas mídias e da negação da política, esqueceram ser o teatro o berço da política, da vida cívica e das instituições de Estado. A parteira da política foi o teatro com histórias trágicas ou cômicas. Os gregos foram os primeiros a compreender estes dois mundos distintos. O mundo do simulacro, das sombras, o mundo das artes, aquele que domina a farsa e faz ver os humanos.

Resumo da ópera: estamos assistindo à transmissão instantânea de uma guerra. A tragédia na Ucrânia coloca diante de cada um de nós a condição humana, a nossa responsabilidade diante de um mundo. Mundo construído por nós mesmos. A guerra não traz uma solução. Ela apenas faz ecoar, no interior de nós, por meio de diferentes linguagens (coração e razão), as disputas humanas diante do conflito. Não existe apenas um caminho. A tragédia mostra o deslocamento constante de um ponto para o outro (Dáimon), uma tensão, uma interrogação em cada circunstância.

O que fazer?

Fortalecer as instituições compreendendo e respeitando as diversas formas de representação política, participar criticamente dos pactos internacionais e fortalecer a maior de todas as artes na busca pela paz, uma velha senhora, a diplomacia.


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