Ricardo Viveiros e a vitalidade das palavras contra o obscurantismo

Por Ieda Lebensztayn, pesquisadora da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP

 01/08/2023 - Publicado há 9 meses
Ieda Lebensztayn – Foto: IEA
Nunca é demais recordar, das memórias de Infância (1945) de Graciliano Ramos, o capítulo-conto Os astrônomos, lição de hermenêutica. Quase analfabeto aos nove anos, o menino viveu a “noite extraordinária” de ser convidado pelo pai a ler o folheto O menino da mata e seu cão Piloto. Animada, a criança reconhecia que havia alguma coisa no livro, embora difícil de entender totalmente: “E uma luzinha quase imperceptível surgia longe, apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu espírito”. Porém, o pai interrompeu o novo hábito, provocando uma sensação de ruína no filho, que sofria com o estigma de incapaz: quando havia descoberto “uma coisa muito preciosa”, de repente “a maravilha” se quebrava, pareciam-lhe vedados os momentos de encanto.

Ora, existe a prima Emília: o menino recorreu a ela e recebeu a sugestão de arriscar-se a ler sozinho. Se os astrônomos leem o céu, ele, conhecendo as letras, seria capaz de reuni-las em palavras e “adivinhar” a página diante de seus olhos. Então, o menino se embrenhou no quintal com as personagens daquele folheto — os lobos, o homem, a mulher, os pequenos. Dobrando-se ao texto, libertou-se do estigma de “bruto em demasia”: “Reli as folhas já percorridas. E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos obscuros”.

Assim, com base no que conhecemos, é possível buscar compreender o desconhecido, o outro, e uma “luzinha” aponta, mesmo se mantendo os limites. Por meio das palavras escritas, o menino se fez outro, vislumbrou outros mundos e a possibilidade de transformação. Mas sua identificação não era com os segredos do céu, e sim com os homens perseguidos como os daquele livro, daí eu apreender para Graciliano o epíteto de “astrônomo do inferno” (Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis. São Paulo: Hedra, 2010).

Pois bem: poética e ética, essa lição hermenêutica me vem ao pensar, desde o título, no novo livro de Ricardo Viveiros: Memórias de um tempo obscuro (São Paulo: Contexto, 2023). Nessa obra, o jornalista e repórter assume o risco de se debruçar criticamente sobre os anos recentes difíceis, de pandemia, ignorância e violência, projetando, através da escrita, uma “luzinha” para o presente e os tempos futuros. O livro se compõe de 86 artigos, redigidos entre 2018 e 2022, em que Viveiros desperta a atenção dos leitores ao criar um estilo objetivo e sensível, partindo de fatos cotidianos, afinal se dirigiu originalmente ao grande público de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, bem como a jornais de outros países, Argentina, Colômbia, Estados Unidos e Portugal. Uma das particularidades de tal estilo é, ao selecionar o assunto de relevância do dia, abordá-lo sempre com base, ao mesmo tempo, em uma pesquisa histórica dos fatos e na própria experiência subjetiva, com o propósito de nos oferecer conhecimentos e nos provocar a sensibilidade e a consciência.

O Dia Internacional da Mulher, por exemplo, significa para o cronista o dever de denunciar o horror da violência contra as mulheres no País. Apontando o aumento do feminicídio nos últimos anos e a predominância de mulheres negras entre as vítimas, ele ressalta a importância da Lei Maria da Penha. No caminho de seu texto, impõe-se a presença de mulheres cuja história deve ser conhecida, como a própria Maria da Penha Maia Fernandes e também Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo. Ao evocar a memória de Rosa, assassinada cruelmente em Berlim em 1919, defende “O tom do respeito”.

Também a necessidade de respeito — agora às pessoas com deficiência e à natureza — leva o autor a nos chamar a atenção para a conquista de Jolinda Garcia Clemente: a 21 de setembro, início da primavera de 1961, ela e outros pais de crianças portadoras de Down, que até então não conseguiam escolas, fundaram a Apae-SP, Instituto Jô Clemente. A data marca o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, Dia da Árvore e Dia Internacional da Paz.

Se o respeito pelas pessoas, com suas diferenças, integra a educação, entre as questões que movem a pena de Viveiros destaca-se o repúdio ao projeto de imposto sobre livros, e num país como o Brasil, pouco afeito à leitura. Inconformado com o descaso do então governo pela cultura e pela arte, o cronista recorda a lastimável queima de livros pelos nazistas na Alemanha em 1933, que teve entre os alvos Albert Einstein, Erich Maria Remarque, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Thomas Mann, Walter Benjamin. Outra questão fundamental em tempos de irracionalismo (A seita que não aceita) é a defesa da liberdade de expressão: não podendo confundir-se com a difusão de mentiras nem com a pregação de violência, exige “responsabilidade de expressão”.

Em Tempo de metamorfose, a lembrança de seu encantamento, em menino, diante da explicação do professor sobre a transformação de lagartas “nojentas” em borboletas, belas e capazes de voo, abre espaço para Viveiros refletir a respeito da necessidade de metamorfoses no mundo, nas pessoas, percebida dolorosamente com a experiência da pandemia. Ele partilha conosco a sabedoria da indígena guatemalteca Rigoberta Menchú Tum, prêmio Nobel da Paz de 1992, segundo a qual o mundo só se transformará se estivermos dispostos a “mudar a nós mesmos”. Eis que o leitor depara com uma aposta essencial de Viveiros, pressuposto e horizonte das Memórias de um tempo obscuro: conseguiremos “superar o medo, o consumismo irresponsável, o desamor, o egoísmo, a corrupção crônica e derrubar a violência com educação e cultura”. Tais palavras sintetizam à perfeição um diagnóstico da miséria da realidade, sobretudo brasileira, ao demandarem um ideal que os leitores hão de reconhecer: o sonho de construir “novos tempos de paz, com liberdade e justiça social”.

Dessa forma, estabelecendo-se aqui um paralelo com a lição dos astrônomos, Ricardo Viveiros, ante tormentos pessoais e coletivos — tendo sofrido a dor máxima de perder um filho e uma neta por causa de um irresponsável no trânsito, e havendo experienciado os recentes tempos de pandemia, genocídio, negacionismo, armamentismo, governo corrupto e antidemocrático, perpetuador de fome e de preconceitos —, empenha-se por compreender e iluminar os impasses da realidade, por meio da escrita de seus artigos. Como ele observa chamando a atenção para o Holocausto dos judeus pelos nazistas, é preciso trazer à luz da memória as trevas de fatos inadmissíveis, para que jamais se repitam. Portanto, surpreendem e conquistam o leitor, diante de tantas adversidades, o apelo e a confiança de Viveiros em se criarem mundos outros e laços afetivos, sobressaindo sua voz como exigência de responsabilidade pela vida de todos.

Nesse sentido, lembro o conceito de “ética do rosto”, do filósofo francês Emmanuel Lévinas (1906-1995), autor de Totalidade e infinito: único, cada rosto, “exposição de um ser à sua morte, o sem defesa, a nudez e a miséria de outrem”, significa um pedido e uma ordem, um imperativo à misericórdia e à responsabilidade do outro.

Exemplar desse desejo de que cada um seja responsável pelo outro, e até capaz de abrandar o sofrimento alheio, é central na obra o artigo Entre perder e ganhar, em que Viveiros nos traz uma mostra da inteligência e da sensibilidade extraordinárias de Franz Kafka, retomada por Jordi Sierra i Fabra em Kafka e a boneca viajante. Ao identificar, no parque de Steglitz em Berlim, a dor de uma menina, advinda da perda de sua boneca, Kafka restituiu a ambas a existência, por meio das palavras escritas: redigiu cartas para a criança, atribuindo a autoria à boneca amada, que teria viajado em busca de mundos novos. E, ao presentear a amiguinha com outra boneca, alegou que a viagem a transformara e deixou para a menina um bilhete, dando conta de que o amor resiste às perdas e se refaz em novas formas.

Assim, em Memórias de um tempo obscuro, Ricardo Viveiros nos oferece o alento de acreditar na existência de pessoas outras, capazes de afeto e de consciência, como também no potencial das palavras para criá-las, encontrá-las, reuni-las, de modo a minorar a tristeza do mundo.

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