Presentes, propinas ou recebidos?

Por Henrique Braga, doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Marcelo Módolo, professor da FFLCH-USP

 28/03/2023 - Publicado há 1 ano
Henrique Braga – Foto: Arquivo pessoal
Marcelo Módolo – Foto: Arquivo pessoal

 

Tempos atrás, quando o país se despedia do inigualável Rei Pelé, fomos procurados por um colega jornalista para comentar o surgimento do “adjetivo pelé”. Depois de alguma estranheza, entendemos do que se tratava: para ele, o termo seria adjetivo em expressões como “o pelé da medicina”, ou “o pelé da gastronomia”, nas quais, creiam, “pelé” continua sendo substantivo.

Analisando sintaticamente as expressões, o termo “Pelé” está funcionando como núcleo de um sintagma nominal, acompanhando de dois adjuntos adnominais (os artigos “o” e as locuções adjetivas “da medicina” e “da gastronomia”). É, sem dúvida, um substantivo. Apesar dessa explicação técnica, nosso colega jornalista continuou pensativo: “mas Pelé nesse caso não expressa qualidade?”

Efeitos da simplificação no ensino-aprendizagem

Alguns temas de gramática descritiva são apresentados, a nosso ver, muito cedo nos currículos escolares e, para tornar os conceitos mais palatáveis, recorre-se por vezes a simplificações difíceis de se corrigir no futuro. É o que ocorre quando se diz que “o sujeito pratica ação” (o que está longe de ser uma verdade absoluta) ou que “os adjetivos expressam qualidades”. Nesse segundo caso, o efeito colateral tem sido deixar em segundo plano o caráter qualificador dos substantivos. 

Sem a menor intenção de defender o ensino de uma “gramática pela gramática” e menos interessados ainda em dar vazão a qualquer sanha taxonômica, chamamos atenção para problemas práticos relacionados a tal equívoco. Para ilustrar isso, convém considerar o uso de substantivos que estão disputando espaço no noticiário recente: presente e propina.

Os recebidos do ex-presidente 

Influenciadores digitais de diversos matizes deram à luz um interessante neologismo: o termo recebido. Embora o particípio do verbo receber não seja palavra nova no idioma, trata-se de um neologismo semântico quando o termo passa a nomear itens enviados por empresas a tais influenciadores, para que esses os divulguem em suas redes sociais. Roupas, lanches, artigos esportivos, bijuterias, enfim, uma miríade de itens pode aparecer como recebidos nos feeds por aí. 

Observe que, nesse caso, não se trata de presentes, já que o envio dos itens exige uma contrapartida – a divulgação. Assumindo que tal contrapartida seja legal e voluntária, não caberia em hipótese alguma nomeá-la com o substantivo propina. Como nomear então tais itens? Não pensamos em melhor termo: recebidos.

Essa busca por precisão conceitual, porém, não tem sido vista no tratamento dado às joias enviadas pela Arábia Saudita ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que apressadamente entraram no noticiário nomeadas como presentes. Adotar esse termo implica assumir que seu envio se deu de forma amistosa, voluntária, sem requerer qualquer contrapartida (lícita ou ilícita) – qualificação que é posta em xeque por opositores do antigo governo.

Defensores da imparcialidade dirão – corretamente – que seria injusto e imprudente nomear as joias como propina. Sem a devida apuração, com base apenas em convicções e não em provas, seria realmente leviano assumir que as joias foram pagamento por algum malfeito – o que estaria implicado nesse outro substantivo qualificador. O problema, porém, é que, se o substantivo propina condena, o substantivo presente absolve. Como nomear os diamantes então? Seriam os recebidos do Jair?

Talvez contrabando?

Chamar os diamantes enviados pela Arábia Saudita de presentes faz vê-los como algo entregue de bom grado, como mostra de afeto e amizade desinteressados. Nomeando-os por propina, adota-se a visão de que haveria uma relação causal (e ilícita) entre o valor do objeto e possíveis benefícios obtidos pelos sauditas. 

Excluindo-se o debate sobre a idoneidade das relações entre os governos, ainda resta uma perspectiva plausível: como as joias adentraram o país de forma clandestina – não declarada e sem recolhimento de imposto –, não parece equivocado designá-las com o termo contrabando. Temos então mais um exemplo de que os nomes estão longe de ser meros rótulos que se colam às “coisas”.

Nomear é qualificar  

A visão de que os adjetivos é que expressam as qualidades, enquanto os substantivos apenas “dão nome às coisas”, traz consigo um erro de origem: a crença de que os nomes são rótulos colocados objetivamente sobre os elementos da realidade, por enunciadores neutros que descrevem o mundo. 

Não é bem assim: dar nome implica assumir uma visão. Os signos linguísticos sinalizam perspectivas e substantivos não são exceção.

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