Para falar da Ucrânia. Analogias, palavras e coisas

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 23/03/2022 - Publicado há 2 anos
Janice Theodoro da Silva – Foto: Reprodução/Youtube

 

“Os homens distinguem-se por aquilo que mostram e assemelham-se por aquilo que escondem” (Paul Valéry, 1871-1945).

A frase é sugestiva, na atual circunstância de guerra na Ucrânia, para refletir sobre dois importantes protagonistas envolvidos no conflito.

A distinção entre Vladimir Putin (1952) e Joe Biden (1942) parece evidente. O primeiro protagonista concebe políticas autoritárias, valoriza estruturas sociais hierárquicas e restringe a participação política e a liberdade dos cidadãos. Seu perfil conservador e autoritário determina a manutenção de costumes tradicionais. Liberdade não é um valor para ser desfrutado por todos. Putin governa utilizando informações disponíveis apenas para o seu grupo. A perseguição à imprensa e aos meios de comunicação ocorre de forma sistemática, impedindo a população russa de ter acesso aos acontecimentos e informações com diferentes origens.

Joe Biden, apesar das dificuldades geradas pelo seu antecessor, Donald Trump, respeita as instituições democráticas e os preceitos constitucionais. A igualdade e a liberdade são garantidas, tanto no âmbito político como jurídico. As instituições, públicas e privadas, dispõem de liberdade para o seu funcionamento e mecanismos legais para a proteção dos diversos tipos de desvios. O acesso à informação é livre e os órgãos de comunicação dispõem de espaço para expressar posições variadas.

Biden e Putin concebem, de formas distintas, a relação do Estado com a sociedade civil. Valéry tem razão ao sugerir a distinção ter origem nos homens, no que mostram, no caso, como concebem o Estado.

“Os homens distinguem-se por aquilo que mostram.”

Valéry, poeta, escolhe a palavra semelhança para sugerir o que eles, humanos, escondem. Ele provoca apresentando a humanidade como uma criação relativamente torta, mas, ainda assim, semelhante a Deus. Existem parecenças entre uns e outros, entre anjos e demônios.

Observem os dados abaixo. Formas de governo distintas são mantenedoras de profundas desigualdades.

Segundo o economista Peter Temin (Instituto de Tecnologia de Massachusetts – MIT), a classe média norte-americana, nestes últimos 50 anos, “passou a representar de 62% da renda agregada dos EUA, para apenas 43%. Os mais ricos passaram a representar de 29% para 49%” (Gerardo Lissard, BBC News, 16 de março de 2018).

De 1989 a 2018, o 1% mais rico aumentou seu patrimônio líquido combinado em US$ 21 trilhões. Os 50% mais pobres viram seu patrimônio líquido diminuir em US$ 900 bilhões no mesmo período.

Os gráficos esclarecem especialmente quando se observa a perda de renda da classe média. Ela passou de 62% da renda para 43% nos Estados Unidos. O tempo passa e a desigualdade aumenta. O que isto significa?

Desigualdade crescente sugere uma tendência, pouco virtuosa, em países com estruturas políticas diferenciadas.

Valéry tem razão. Existem semelhanças.

Outra convergência é a existência de grupos extremistas de direita, supremacistas brancos, conservadores e críticos aos costumes típicos do Ocidente moderno. Esses grupos estão presentes nos Estados Unidos, na União Europeia e na Rússia.

Qual a razão de sociedades com instituições distintas estarem produzindo grupos extremistas com pautas semelhantes: racistas, anti-intelectualistas e armamentistas? Eles se caracterizam, igualmente, pelo mesmo potencial incendiário, pelo ódio e por uma vontade demolidora das instituições democráticas.

Existem semelhanças intrínsecas à própria condição humana, no ódio fruto das paixões, vaidades e misérias humanas (e no amor também). Decididamente o planeta Terra vive um mal-estar nas culturas. Esses grupos, produtores de ódio, desfrutam de semelhanças, inspiram e respiram o mal-estar. Em geral, os ventos têm origem em regiões com altos índices de desemprego, baixa renda, pouca proteção do Estado e muita frustração diante da sociedade de consumo. Um detalhe importante: Eles apresentam pouca vocação para a vida acadêmica, acentuado desinteresse literário-cultural e apreço a palavras relacionadas ao baixo corporal. Acreditam, piamente, no empreendedorismo como projeto de vida, valorizam o “self-made man” e o individualismo como caminho garantido de sucesso. Resultado: muito ódio e frustração e, na vida real, pouco emprego e mobilidade social.

O terceiro tema consoante com a hipótese de Valéry, sobre semelhanças, nos remete à citação de Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU. Ele afirmou, em consonância com a Carta das Nações Unidas, ter sido a invasão do Iraque ilegal: soberania desrespeitada da mesma forma como ocorreu na Ucrânia. Existem semelhanças.

Valéry tem razão.

Das semelhanças e das diferenças

No grande inventário das semelhanças e diferenças, as diferenças entre Putin e Biden aparecem de forma evidente. Basta ligar a televisão, abrir o jornal ou acessar internet. As evidências nos permitem supor que os crimes praticados na Ucrânia serão identificados e responsabilizados.

Mas, por que a frase de Valéry é sugestiva especialmente no que diz respeito às semelhanças?

Porque existem equivalências entre os indivíduos desassemelhados política e culturalmente. Indivíduos e sociedades distintas carregam tensões internas similares tanto do ponto de vista pessoal como político. Os desajustes sociais atingem a sociedade russa, a sociedade norte-americana e a Comunidade Europeia. Existe um forte desajuste social e político do qual a desigualdade é apenas um capítulo, as imigrações outro e a fome ainda outro. A crise é mundial. Ela atinge a humanidade nos seus mais profundos desejos e necessidades.

O mundo globalizou as comunicações, organizou cadeias produtivas, promoveu a livre circulação de mercadorias, criou logísticas reversas. Mas esqueceu das pessoas, dos imigrantes, dos despossuídos obrigados a circular em razão das guerras, da fome e das perseguições políticas. O mundo segue o seu caminho perdendo, pouco a pouco, a humanidade (nos dois sentidos, abstrato e concreto). O planeta está doente, como aconteceu no entreguerras.

Talvez os poetas possam ajudar quando os homens da guerra não se entendem. Muita gente cansada com o mundo real partiu para o universo virtual. Não se trata mais de expor ou comprovar um fato, obter uma vitória jurídica ou salvar a pólis. O sonho, hoje, é ser visto. Fazer diferença por um instante, sentir o efeito impactante de uma mentira e o sabor arrebatador do poder. Ao enganador, protagonista nas redes sociais, se tiver sorte, acertar no lance, na postagem, pouco importa ser reconhecido como produtor de mentiras. Mente porque conhece a verdade. Isto o satisfaz. Supõe ser a mentira patrimônio nivelador de todos. É verdade?

O que fazer diante da mentira entre os humanos quando ela se transforma em arma de guerra?

Resumo da ópera: desmontá-la, peça por peça, para evitar a destruição da comunidade cívica, fazer ver o poder da linguagem, poder de vida e morte, de liberdade e sujeição, de proporção e desproporção.

Produzir antídoto para a mentira. Demonstrar como se mexe e remexe na linguagem, encobrindo e desencobrindo as coisas. Remédio produzido por poetas, jornalistas e amantes das palavras.

E, no mundo das coisas materiais, não se esquecer do planeta, da terra e do semeador, mestre na arte de fazer do girassol, semente.


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