Oitenta anos de João Antônio – de pingentes e academia

Clara Ornellas é pós-doutoranda em Literaturas Comparadas de Línguas Portuguesas na USP

 09/11/2017 - Publicado há 6 anos
Clara Ornellas – Foto: Arquivo pessoal

 Se João Antônio estivesse vivo, completaria 80 anos em 2017. Um de seus objetivos foi que sua produção alcançasse a atemporalidade. Isso pode ser comemorado, ao menos parcialmente, depois de 21 anos de sua morte. O evento 80 Anos de João Antônio, a ser realizado na FFLCH nos dias 16 e 17 de novembro, reunirá diferentes pesquisadores e professores interessados em sua obra. Serão abordados temas como ética marginal, personagens à margem da sociedade, apreensão da realidade urbana e humana, além de questões relacionadas a materiais primários, biográficos e até mesmo um texto inédito.

A literatura do escritor paulistano caracteriza-se, entre outros aspectos, pelo enfoque a personagens da margem urbana na busca pela sobrevivência, que têm na representação de sua linguagem um dos pontos singulares da produção de João Antônio. Isso pode ser verificado desde sua obra de estreia, Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), até a coletânea Um Herói sem Paradeiro (1996). Outro viés que se destaca em sua obra relaciona-se à interação do jornalismo com a sua literatura. Jornalista durante toda a vida, naturalmente os dois ofícios se relacionaram com ganhos para as duas vertentes: a literatura ganhou com o levantamento detido e enfático da realidade e o jornalismo, com caracterizações sensíveis, como pode ser visto em “Pingentes” e “Mariazinha Tiro a Esmo”, ambas narrativas publicadas em Malhação do Judas Carioca (1975).

A preocupação do escritor em atentar para a margem também se manifestou em textos sobre personalidades da cultura brasileira. O livro Dama do Encantado (1996), por exemplo, apresenta perfis de figuras como Aracy de Almeida, o alfaiate da Academia Brasileira de Letras, Garrincha e Lima Barreto, entre outros personagens que tiveram origem humilde ou usaram seu talento para quebrar regras do estabelecido socialmente, fosse em termos sociais ou de linguagem estética.

Desde que seu acervo foi depositado na Unesp-Assis (1997), muito tem feito João Antônio para a formação de dezenas de pesquisadores, desde iniciação científica a pós-doutorado em universidades como USP, Unicamp, Mackenzie, UFSCar, PUC-SP, UFRJ, PUC-RS, UEL, UFPB: de Assis para São Paulo e de São Paulo para o Brasil. Sim, os pingentes do autor paulistano vêm conseguindo um lugar no contexto acadêmico – pelo menos aqui, pois do lado de lá continuam dependurados invisivelmente pelas ruas das cidades brasileiras e nos mais distantes e pobres subúrbios.
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O evento 80 Anos de João Antônio, a ser realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas nos dias 16 e 17 de novembro, reunirá diferentes pesquisadores e professores interessados em sua obra. Serão abordados temas como ética marginal, personagens à margem da sociedade, apreensão da realidade urbana e humana, além de questões relacionadas a materiais primários, biográficos e até mesmo um texto inédito.

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Se o malandro de João Antônio de sua obra de estreia pode revelar saudosismo de uma época quando contravenção era sinônimo de trapacear em partidas de sinuca ou usar a navalha para se defender de desafetos, o autor, posteriormente, também atentou para o aumento da criminalidade em razão do tráfico de drogas. Neste contento, um dos exemplos mais emblemáticos de sua obra é a personagem Paulinho Perna Torta (1964) que, de criança abandonada nas ruas de São Paulo alcança a fama e a consideração de seus pares e da mídia por comandar bordéis de luxo e facções de crime e entorpecentes. Mas, como diria João Antônio, hoje Paulinho seria um “pixulé” perto de um crime organizado que trucida a realidade de grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro – não mais revólver, mas armas de guerra de última geração. Não mais na calada da noite, mas em pleno dia e em qualquer lugar. E as vítimas não são mais só adultos, mas crianças vitimadas frequentemente por balas perdidas. Bom fosse se ainda estivéssemos na nostalgia da primeira hora de João Antônio em termos de realidade urbana.

Assim como o autor paulistano previu em entrevistas a falta de estrutura social como elemento a estimular o aumento da criminalidade, um dos escritores mais admirados por ele também atentou para isso: Lima Barreto. A obra barretiana demonstra reflexões visionárias sobre a necessidade de se proporcionar condições de vida digna a todos os brasileiros como forma de prevenir manifestações que acarretariam uma possível automutilação da sociedade brasileira. Assim seria; assim está.

A tão combatida falta de ética nos interstícios do poder público, também refletida por João e Lima, hoje ocupa as manchetes cotidianamente, o que demonstra que os mesmos responsáveis pelo acirramento das desigualdades sociais, seja do início, meados ou fim do século 20, continuam sendo os mesmos, talvez apenas a desfaçatez tenha se acentuado neste século 21. O que faz lembrar uma afirmação contundente de João Antônio: “Se eu escrever sobre Cascadura vão dizer que sou o Papa do Surrealismo Fantástico. Eu não, o surrealismo fantástico é Cascadura” (bairro da periferia carioca).

João Antônio deu contornos sensíveis ao menino de rua, ao velho pedinte, à prostituta na triste luta da vida. Falou de seres que tinham pão hoje sim, outro dia não. De cidades que acolhem apenas parcialmente quem não tem condições de com elas interagir economicamente; seres invisíveis que configuram as “trouxas esquecidas” de Lima Barreto. Os pingentes.

 

 

 

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