Ainda havia alguma ilusão de que os algoritmos podiam ser domesticados, dependendo da forma como as postagens eram feitas e de alguns parâmetros – autor, horário, palavras-chave, curtidas, compartilhamento etc. Embora a participação de robôs, notadamente na eleição de Jair Bolsonaro em 2018, tenha tido papel importante, pairava sobre as big techs o benefício da dúvida.
Teoricamente, cabia aos usuários a iniciativa de denunciar discursos de ódio, às plataformas a rápida identificação desses discursos, bem como a proteção dos dados, e ao poder público as ações para que certas postagens fossem barradas, seja pela exclusão do conteúdo publicado ou pelo banimento do autor. Mas Elon Musk decidiu participar ativamente do jogo, e tudo mudou.
Não queremos comentar aqui os detalhes da disputa de poder entre Musk e Moraes, pois eles estão na cobertura da mídia. Nosso foco é o movimento do dono do X, que muda o status da plataforma para transformá-la numa espécie de panfleto político digital.
Porém, não são centenas de panfletos impressos e distribuídos a mão, como se fazia antigamente, mas sim uma poderosa mídia com meio bilhão de usuários, que não apenas tem enorme poder de massificação, mas também de calar o outro lado. É isso que muda o jogo. Nas mãos de Musk, agora sem máscara, o X se tornou uma ferramenta de comunicação que endossa, reforça e impõe a narrativa da extrema direita no Brasil.
Elon Musk se notabilizou como empresário visionário ao transformar a Tesla na montadora de carros mais valorizada do mundo. Com uma estratégia inteligente, que considerou inicialmente a infraestrutura necessária para o carregamento dos carros elétricos, o empresário sul-africano apostou todas as fichas na Tesla e, de alguma forma, obrigou as montadoras tradicionais a correrem atrás dela, em busca de uma mobilidade mais limpa.
Num ambiente de superaquecimento global, os carros da Tesla não emitem CO2 durante a utilização por serem totalmente elétricos. O dano colateral causado pelas baterias de íons de lítio é uma discussão que ainda está sendo feita, mas é menor do que o dano provocado pelos carros com motor a combustão interna.
Musk também deu passos importantes em outras áreas, como a de satélites de comunicação, com sua empresa Starlink, e com os voos espaciais com foguetes que retornam e pousam em pé, com a Space-X. Faltava, entretanto, uma empresa de comunicação global que fechasse o ciclo.
O Twitter era a plataforma perfeita para os planos de Elon Musk. Embora não fosse tão popular como Facebook, Instagram e TikTok, o Twitter era a rede social preferida dos intelectuais, muito usada por políticos e por jornalistas, portanto com enorme capacidade de formar opinião. Trump e Bolsonaro, em seus mandatos, não precisavam convocar entrevistas coletivas ou rede nacional para se comunicar com frequência – diziam o que queriam em mensagens de até 280 caracteres no Twitter.
O Twitter, aliás, era considerado a rede social mais engajada na detecção e banimento dos discursos de ódio e de outros crimes realizados a partir das plataformas digitais. Tanto que Trump foi banido do Twitter, em 2021, por incitar a violência no episódio de invasão do Capitólio. Musk pagou 44 bilhões de dólares pelo Twitter e já chegou cortando as cabeças dos líderes. Tudo seria mudado.
Em 2022, Musk fez uma enquete em seu Twitter e, pelo resultado (51,8% contra 48,2%), decidiu reativar a conta de Trump. E tuitou: “O povo falou. Trump será reintegrado. A voz do povo é a voz de Deus”, escreveu, em latim: “Vox Populi, Vox Dei”. O que ele não disse é que tem o controle do algoritmo a seu dispor.
Uma de suas primeiras providências foi desativar todas as contas verificadas, marcadas com o famoso selinho azul, que servia para diferenciar veículos de informação reais, como The New York Times e Folha de S. Paulo, por exemplo, de perfis que pudessem se passar por eles. O selo azul de “perfil verificado” também era distribuído para jornalistas, artistas e outras pessoas que poderiam eventualmente ser vítimas de falsificação no uso de seus nomes. Este selo era gratuito.
Musk decretou o fim do selo gratuito e começou a cobrar por seu uso. Portanto, não apenas utilizava a informação dos “criadores de conteúdo”, além de minerar seus dados, mas também passou a receber por eles! Uma situação que antes seria considerada absurda, pois a grande massa de usuários das redes sociais está de fato trabalhando de graça para as plataformas.
O dono da Tesla, da Starlink, da Space-X e do Twitter provou mais uma vez que era um “gênio” do capitalismo, pois muitos jornalistas toparam pagar pelo selo, além de pessoas anônimas que passaram a ser “verificadas”. Em troca, ganharam mais espaço para suas postagens (não mais limitadas em 280 caracteres) e, mais importante, passaram a contar com uma providencial ajuda do algoritmo. Contas verificadas têm mais visualizações, e seus donos ganham mais relevância na mídia digital.
Não demorou para que Mark Zuckerberg adotasse a mesma ideia para o Facebook e o Instagram. Elon Musk ainda mudou o nome da empresa, de Twitter para X, o que também foi um choque para os usuários, que ficaram órfãos do simpático passarinho azul. Mas tudo estava se acomodando até que o dono do X decidiu levantar a bandeira da extrema direita brasileira e passou a chamar o ministro Alexandre de Moraes de “ditador do Brasil”.
Não uma ou duas vezes, mas várias. Por incrível que pareça, num primeiro momento o que Musk fez, ao compartilhar e comentar uma postagem de Moraes no X, era apenas o normal da plataforma, que sempre teve fortes embates, mesmo quando se chamava Twitter. A diferença – gritante e perigosa – é que, no caso, um dos dois era simplesmente o dono do X. E que ameaçava não cumprir as decisões judiciais de um país soberano.
Portanto, Musk mudou o status do X. Ele deixou de ser um espaço de informação ligeira e de debates e passou a ser o Pravda particular do dono da plataforma, que tem interesse na extração de lítio na Argentina (daí sua ótima relação com Javier Milei) e já espera que Trump, se voltar à Presidência dos Estados Unidos, coloque barreiras comerciais para a entrada de carros elétricos chineses no mercado estadunidense, especialmente os da BYD.
Atualmente, a Tesla ocupa o 14º lugar no ranking global de vendas e tem o carro mais vendido do mundo, o Model Y. Mas a BYD já passou para o 9º lugar, está levantando fábricas de carros elétricos no Brasil e no México, e pretende entrar em todos os mercados com veículos elétricos acessíveis, o que não é o caso dos automóveis da Tesla, todos caríssimos.
Musk diz em suas bravatas contra Moraes (e, por extensão, contra o Poder Judiciário do Brasil) que luta pela “liberdade”, palavra esculachada pela extrema direita no mundo inteiro, de tanto que seu significado foi deturpado. Mas, curiosamente, sobre a liberdade de expressão na China, onde tem uma fábrica na Tesla, e onde o X é proibido, Musk nunca disse absolutamente nada.
Com a polêmica entre o X e a Justiça brasileira, muitos usuários abandonaram a plataforma e correram para duas parecidas: o Threads e o Bluesky. O Threads pertence a Zuckerberg e já há algum tempo abriu contas automaticamente para os usuários do Instagram, tanto que os perfis são vinculados. Poucos usavam o Threads, que perdeu 70% de usuários após o impacto inicial; agora volta a ser uma das opções de quem se sentiu traído pela postura do dono do X.
O Bluesky pertence a Jack Dorsey, que foi um dos criadores do Twitter e CEO da empresa até o ano passado. Vários perfis da esquerda brasileira migraram rapidamente para o Bluesky, que tem a promessa de ser mais seguro e transparente para os usuários.
O Bluesky utiliza a tecnologia blockchain, que também é usada em criptomoedas. “Estamos construindo o AT Protocol, uma nova base para redes sociais que gera aos criadores independência de plataformas, aos desenvolvedores a liberdade de construir e aos usuários uma escolha em sua experiência”, afirma o site oficial da Bluesky.
É possível que Musk tenha dado um tiro no pé, jogando milhões de usuários do X no colo de Zuckerberg (Threads) e de Dorsey (Bluesky)? Sob o ponto de vista do X como negócio de comunicação, sim. Mas já está claro que o X não é mais um espaço de debate isento e se tornou apenas um instrumento para imposição de uma narrativa política particular, a de seu dono, cuja briga pela “liberdade” é quase uma moeda de troca.
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