Em memória de Newton Carneiro Affonso da Costa

Por Juliano Maranhão, professor da Faculdade de Direito da USP

 Publicado: 29/04/2024
Newton Carneiro da Costa e Juliano Maranhão em Florianópolis, em 4 de março de 2023 – Foto: Arquivo pessoal
Juliano Maranhão – Foto: Arquivo pessoal

É curioso como alguns rituais passam a fazer sentido, naqueles momentos em que o tempo parece parar. Demorei exatamente sete dias para me recompor e conseguir escrever sobre o professor Newton da Costa. Para me conformar, refletir sobre seu enorme legado para a filosofia da ciência e entender seu impacto transformador em minha vida, algo que percebi ser compartilhado entre seus discípulos e reconhecível mutuamente em apenas um gesto, uma palavra ou olhar, nesta semana de luto.

Newton foi daquelas pessoas cativantes, que marcam no mais breve contato. Bastava, dele, apenas uma observação, sempre aguçada e espirituosa, para chacoalhar nossa forma de pensar e encarar o mundo ou aquilo que acreditávamos conhecer. Diante de seu senso de humor característico, nossa reação imediata ao comentário era uma risada do aparentemente ridículo, mas que, depois, com o franzir do cenho, revelava-se ser um questionamento profundo.

Foi essa atitude inquieta e completamente imune a dogmas que o fez um dos pensadores mais influentes de seu tempo. Frente ao paradoxo que Russell revelou na axiomatização da teoria de conjuntos ou ao conflito entre teorias físicas quântica e da relatividade, enquanto todos buscavam ajustes nos postulados da teoria ou uma proposta teórica unificadora, vem sua pergunta quase pueril: por que a lógica subjacente não poderia admitir contradições? A resposta jocosa imediata seria: ora, ser ilógico é o mesmo que ser contraditório! Mas a reflexão posterior levou ao reconhecimento de que tal identificação não passava de um dogma da lógica clássica. Daí a criação de um novo campo de pesquisa na lógica e filosofia da ciência, que o tornou famoso internacionalmente: as lógicas paraconsistentes.

O questionamento, originalmente técnico, matemático, alastrou-se por diferentes campos do saber, levando a avanços não só nas ciências exatas, como também na compreensão do direito, da economia, da psicologia e mesmo em aplicações tecnológicas, como a inteligência artificial.

Mas Newton não foi apenas o criador da lógica paraconsistente. Enquanto todos teorizavam sobre a importância da distinção entre a sintaxe e a semântica de um cálculo lógico, ele desenvolveu a teoria das valorações, um método para gerar, a partir de qualquer sistema simbólico, satisfazendo poucas condições, sua interpretação, como uma espécie de reflexo formal. Frente as disputas teóricas sobre a concepção de verdade das proposições da ciência, questionou a própria pretensão de verdade, desenvolvendo a teoria da quase-verdade, em que a verdade, ou quase-verdade das proposições, circunscreve-se a determinados domínios teóricos. E foi assim em praticamente todas as áreas do saber com as quais teve contato. Lembro-me de um de nossos primeiros encontros, em que me perguntou: “Escuta, por que vocês, juristas, referem-se ao Direito, no singular, e não aos Direitos, no plural?”.

Mas nada se compara ao convívio com essa pessoa extraordinária. Durante o curso de Direito, preferia passar meu tempo no seu grupo de estudos, na Faculdade de Filosofia da USP, reunido com seus orientandos de diferentes nacionalidades e das mais diversas áreas do conhecimento, em uma troca que foi, até hoje, minha principal vivência da atividade científica. Isso sem falar de suas histórias, contadas sempre com desfechos surpreendentes e hilários, mas com algo a aprender, sobre sua vida acadêmica e seus encontros com grandes personalidades da lógica, da ciência e mesmo com famosos juristas, como Pontes de Miranda.

No ano passado, visitei-o em Florianópolis e recordei, com imenso prazer, algumas daquelas histórias, quando, então, combinamos de gravar um conjunto de entrevistas para registrá-las e passar adiante essa experiência rica e única de um verdadeiro scholar internacional. Não deu tempo… Não deu.

Dois dias antes de seu falecimento, sonhei que meus alunos estavam dispersos e não prestavam atenção na aula. Aflito, incapaz de contê-los, olhei para o jardim ao lado da sala e lá estava o professor, sereno, sorrindo. Pedi sua ajuda e ele perguntou: “Por que você quer controlá-los?”. No dia seguinte, na classe, coloquei sua foto no telão e dediquei a aula a falar sobre o espírito científico, a partir daquele espírito, livre, inquieto e carismático. Algo me tranquilizou. Vai ser assim, por seus discípulos, e pelos discípulos de seus discípulos, que suas histórias e seu legado passarão adiante.

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