O homem e as armas

Jurandir Renovato é jornalista e editor executivo da “Revista USP”

 05/07/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 22/01/2021 as 20:03

Jurandir Renovato – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Este é o título de uma peça de Bernard Shaw. Foi tirado do primeiro verso da Eneida, que por sua vez já tinha inspirado o famoso “as armas e os barões assinalados”, d’Os Lusíadas, de modo que tudo somado, Shaw, Virgílio, Camões, por si só já renderia uma boa prosa. Ou poesia, dependendo do ponto de vista. A história se passa na Bulgária, e quanto a isso, apesar de muita gente, como eu, até então julgar que ela só existisse na imaginação do escritor Campos de Carvalho, autor d’O púlcaro búlgaro – principalmente quando ele afirma que, “se a Bulgária existe, então a cidade de Sófia terá que fatalmente existir” –, Shaw não tirou de lugar nenhum. Ela existe mesmo. Lá no sudeste da Europa.

Na peça – talvez a mais popular do autor –, a família Petkoff tem motivos de sobra para festejar. O noivo da filha mais nova, o oficial búlgaro Sérgio, foi condecorado por bravura em uma das batalhas na guerra contra a Sérvia ao ter tomado a frente de seu regimento, em heroica cavalgada, levando-o a uma até então improvável vitória. Já é noite quando um fugitivo sérvio invade a casa. Ele entra no quarto de Raína, a jovem noiva. Por meio dele ela ficará sabendo da nada heroica aventura do seu amado, cujo cavalo na verdade saiu desembestado e só não levou um tiro porque o soldado sérvio do outro lado da trincheira, por coincidência ele próprio, o invasor, estarrecido com tamanha insanidade, e não tendo outra coisa nos bolsos a não ser chocolates, não conseguiu carregar o seu rifle.

Ainda que no título a palavra “armas” tenha o sentido de forças armadas, e não de instrumento usado no ataque ou na defesa seja lá do que for, este também está muito presente na peça, sobretudo nas mãos do “soldadinho de chocolate”. Por esse motivo talvez (ou por vários outros), sempre pensava nesse texto de Shaw quando, voltando para casa, passava por uma escola de tiro na qual, através de uma das janelas, podia-se ver o seguinte cartaz fixado na parede: NÃO FUME AQUI, SEU IMBECIL! Era um cartaz grande, escrito com uma letra correta, mas seca e sem firulas. Típica caligrafia masculina, podemos dizer, em maiúsculas, intimidante tanto no conteúdo quanto na forma. Ficava tentando imaginar a reação da pessoa que, ao fazer sua inscrição nessa escola, desse com a placa ameaçadora. No que pensaria, principalmente se fosse fumante?

Essa placa, afora sua intrínseca agressividade, escondia, numa primeira impressão, duas ideias básicas e simples: a) que cigarro não é bom; e b) que quem fuma não é inteligente. Com a primeira eu concordo plenamente, claro. Quem vai discordar dos graves prejuízos à saúde causados pela nicotina? Cigarro mata mesmo. De câncer, enfisema, trombose, infarto, derrame cerebral. No caso daquela escola, uma nova modalidade poderia até ser incluída nesse rol: a morte a tiro. Uma morte colateral, é verdade, mas qualquer morte é sempre desagradável, não é mesmo? E talvez fosse nisso que pensasse o candidato fumante no momento de sua inscrição: que, se acendesse um cigarro ali, levaria bala na certa. E não seria de chocolate.

Quanto à segunda ideia contida na peculiar advertência, não estou muito convencido. A acreditar nela teria de concordar também com a ignorância (ou com a falta de inteligência) de fumantes inveterados como Mário de Andrade, André Gide, Graciliano Ramos, Jean-Paul Sartre, Gabriel García Márquez. Isso para ficar só no campo das letras. E o que falar da pessoa mais iluminada intelectualmente que conheci na vida, o professor Flavio Di Giorgio, cujo paletó era todo furado dos cigarros sem filtro que acendia um atrás do outro?

Também existe quem veja no cigarro um facilitador da inteligência. É o caso do chinês Lin Yutang, que chega a fazer uma espécie de apologia espiritual da nicotina. Ele até admite ser o tabagismo uma fraqueza moral, mas, por outro lado, como pondera, “longe de mim os homens que não têm fraquezas! Eles não são confiáveis”. Thomas Mann, por seu lado, não entendia como se podia viver sem fumar. Exageros à parte, o fato é que o problema do vício não é tão simples como sugerem os especialistas na arte de deixar de fumar – de os outros deixarem de fumar, bem entendido. Italo Svevo aliás dedicou um capítulo inteiro de sua obra-prima A consciência de Zeno às frustradas e sempre sofridas tentativas de se largar o cigarro.

Voltando ao teatro, numa das peças em um ato de Tchekhov, um médico (fumante) de província é levado por sua mulher a proferir uma palestra sobre os malefícios do tabagismo. O resultado é engraçadíssimo. O pobre homem, nervoso diante da plateia, a todo instante acende um cigarro esquecendo-se momentaneamente do teor (sem nicotina) de sua palestra. Na década de 80 o músico e ator Tato Fischer apresentou uma montagem dessa peça no Teatro São Pedro. Nela ele incluiu uma brincadeira aprendida na infância, de “engolir” o cigarro aceso, escondendo-o preso na língua. As pessoas riam tanto desse pequeno truque que chegavam a passar mal.

O que o texto do escritor russo mostra, ou parece mostrar, no fundo, é que, para o viciado, o ato de fumar é algo quase involuntário, como um reflexo automático. Independente de sua (força de) vontade. E portanto, pensamos nós, não tem nada a ver com inteligência. Bem diferente de pegar uma arma e apontá-la para alguém, o que, para o bem ou para o mal, é sempre um ato consciente. E também, na maioria das vezes, imbecil.

Pensando bem, associações entre coragem, cigarro e armas (nos dois sentidos) não são de todo absurdas como parecem à primeira vista. Expressões como “levar fumo” e outras relacionadas à palavra “fogo” existem às pencas. O maior exemplo, talvez, seja o dos pracinhas do exército brasileiro. O motivo é conhecido. Quando se cogitou a entrada do Brasil na II Guerra houve quem dissesse que isso só aconteceria se uma cobra fumasse. O Brasil mandou milhares de soldados para a Itália e a cobra fumando virou símbolo da Força Expedicionária Brasileira, a FEB.

Mas foi R., com quem mantive certo contato, por meio do meu irmão, na época em que trabalhei na Editora do Brasil, que conseguiu aproximar essas ideias de forma orgânica e no melhor espírito shawiano. R. não voltou de guerra alguma, muito menos foi condecorado por qualquer coisa envolvendo bravura ou heroísmo. Aliás, também não é fumante, apesar de, já maduro de corpo e espírito (e à maneira do João Cabral de Melo Neto, o qual, dizem, começou a fumar aos sessenta anos), ter se aventurado nalgumas tragadas para, vamos dizer assim, abrir os poros da reflexão.

Acontece que R. foi o único de sua família a servir o exército, e como não tivesse muita aptidão para as lidas da caserna, foi mandado para o rancho, que é o local onde se consome e se produz a comida de todo o quartel. Não é um local muito aprazível. É quente, sujo, mal-cheiroso e sempre com uma infinidade de panelas gigantescas e imundas para limpar. O chão é um mar de cuspe, restos de comida apodrecida e bitucas de cigarro. Muitas bitucas. A incumbência de R. era, no fim da noite, após a última refeição do dia, quando o rancheiro saía para dormir, e vários outros soldados iam até lá para fumar e jogar baralho, raspar a crosta do fundo das panelas, esfregar o encardido da louça e do chão, jogar tudo no lixo e ficar de prontidão para inescapáveis eventualidades.

Já era quase madrugada quando o responsável pelo refeitório dos oficiais veio chamá-lo. Uma comitiva de outro estado havia chegado de surpresa para jantar. Os dois soldados então entraram no rancho. Havia carne e arroz preparados em quantidade suficiente, vários legumes mais ou menos consumíveis, mas faltava feijão, indispensável, como os dois bem sabiam, na dieta militar. O pouco que sobrara repousava no fundo do lixo recoberto por uma grossa camada de cinzas e bitucas de cigarro. Vamos dizer que R., olhando para aquela lixeira, e diante da expressão reprovadora do colega, na qual estava implícita a indigesta certeza de que os oficiais não podiam ficar sem o sagrado cereal, teve uma epifania. Nada comparada, claro, com a de Sidarta Gautama, o Buda, diante da tigela de arroz. Tratava-se aqui de feijão. E com aspecto não muito saudável. E nem R. alcançaria a iluminação por conta disso. A menos que o nirvana se encontrasse numa das celas do quartel de Quitaúna, para onde provavelmente iria caso não aprontasse o jantar direito. Ou talvez por isso mesmo…

Sua ideia de fato era arriscada. Eles fariam uma espécie de “feijão maravilha”, a lembrar o título de uma telenovela da época. Retirariam as bitucas de cigarro e disfarçariam as cinzas residuais com condimentos, hortaliças e legumes picados. Em alguns minutos tudo estaria pronto.

O soldado-garçom deve ter entrado na sala de refeição dos oficiais com a sensação de quem vai ao encontro do seu pelotão de fuzilamento. Serviu a todos (uns quatro ou cinco) o mais rápido que pôde e já ia saindo quando ouviu a voz do major ressoar atrás de si. Parou petrificado. O semblante do major era de uma dubiedade fulminante. Estava perdido, pensou consigo enquanto tentava contar todas as patentes naquela sala.

“Quem fez este feijão?”, perguntou o major. O rapaz recuou, as pernas bambearam. “Foi o soldado R., senhor.” Não tinha mais jeito, estava definitivamente perdido. Os dois estavam. O homem levantou o queixo, numa expressão enérgica. Iria fuzilá-lo ali mesmo? Mas então relaxou os músculos da face: “Dê os parabéns a ele, soldado, o exército precisa de mais gente assim, com criatividade. Dispensado”, disse e voltou a regalar-se com o “feijão maravilha”. Não há amor mais sincero que o amor da comida, teria pensado com alívio Bernard Shaw ao transpor a porta daquele refeitório como quem sai ileso de um tiroteio. E assim, sã e salvo, entra em casa e acende um cigarro.


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