Toca o telefone. Uma voz de mulher, impaciente e autoritária: “Quem está falando é a assessora [uma maneira chique de dizer secretária, você pensa, se antecipando ao final da frase dela] do secretário de Relações Internacionais [de fato, secretária de secretário não pega bem, você conclui] da prefeitura do município de São Francisco do Varal”.
São Francisco do Varal?! Com quem eles se relacionariam internacionalmente, você se pergunta, com Santa Rita do Passa Quatro? Mas não quer ser indelicado, você ama o interior paulista, passou férias inesquecíveis no Vale do Paraíba, onde havia uma parreira de uvas mágicas no quintal da sua bisavó, por isso não diz nada a ela, que mantém o tom distante, superior: “Me transfere para o editor chefe”. “Ele já foi embora.” “E você quem é?”
Você pensa num ensaio do Roberto DaMatta que leu há muito tempo – “Sabe com quem está falando?” –, no qual o antropólogo carioca diz que essa atitude arrogante de algumas pessoas é um ritual muito mais próximo das hierarquias e dos puxa-saquismos do que das relações espontâneas e livres das cervejas na praia e dos futebóis. Você lembra bem desse trecho, até o grifou, e por um momento volta a pensar na garrafa na geladeira.
Dezessete horas e quarenta e oito minutos. Você não diz quem é, apenas toma fôlego antes de recalibrar o ponto certo da cordialidade, não aquela de que fala o Sérgio Buarque de Holanda, endêmica ao brasileiro, mas uma outra mais comezinha, para o uso específico de falar ao telefone, e isso sem demonstrar servilismo nem trair a ansiedade.
Opta por uma fórmula neutra: “Em que posso ajudar?”. “O doutor [deve ser o secretário] quer publicar um texto na Revista da USP [você tosse, odeia quando colocam preposição no meio da Revista USP] e mandou perguntar se vocês podem vir buscar o artigo e quando vai sair publicado. Ele tem urgência.” Você até poderia dizer “todos têm e todos querem, minha cara”, ou então que naquele início de anos 2000 já havia, entre outros, um dispositivo tecnológico maravilhoso chamado fax, mas, atordoado, apenas pergunta: “O que disse?”. A cerveja se torna ainda mais real, ao alcance de sua mão. “Você é surdo?” Epa! “Como!?”, você se espanta. “Perguntei se você é surdo.”
Você não contava com isso, muito menos numa véspera de feriado. Agora só tem duas opções, na verdade três. Hesita. Ela é esperta, sabe que ultrapassou um limite perigoso, por isso não deixa que responda, mudando imediatamente o diapasão: “É que o doutor vai viajar amanhã bem cedo e precisa de uma resposta ainda hoje”.
Está se fazendo de garotinha pidona, é sua chance de dar o troco, de perguntar “viajar pra onde, pra Pindamonhangaba?”, mas você está mesmo de bom humor e quer continuar assim. Como um técnico de futebol cuja partida estivesse terminando com um resultado favorável mas passível de ser revertido, você sabe que não deve ir para o ataque, é melhor ocupar o meio de campo.
“As coisas não funcionam assim, existe um procedimento padrão”, informa secamente, mas sem rispidez. A assessora de Relações Internacionais não quer saber de procedimentos nem de padrões. Arrisca uma performance de atendente de telemarketing: “O doutor faz questão de estar publicando imediatamente”. A danada tem mil faces, você admite. Será que é bonita? As mulheres bonitas, por algum motivo, o deixam mais à vontade.
Você explica todo o trâmite, da recepção do artigo à submissão ao conselho editorial da revista. Não é nada de mais, você faz isso sempre. A assessora não pode ouvir falar de conselho, teve um problema com o conselho tutelar, que não vem ao caso, e o doutor também não suporta as reuniões do conselho municipal, e ela menos ainda, que tem de redigir as atas. “Ele prefere que não seja lido por ninguém antes da publicação.” “Isso é impossível, sinto muito”, você diz, não sentindo nada. “E depois do conselho ainda tem de ser avaliado por pares, e, se aceito, e só se for aceito, vai para uma fila de espera para então ser preparado, revisado etc.; é um mecanismo complexo e demorado.”
Aqui chegamos ao ponto crucial. É quando a assessora do secretário de Relações Internacionais da prefeitura de São Francisco do Varal perde de vez a compostura. Manda você plantar batatas. Ora essa! Mecanismo complexo é o cacete! Bota o dedo no seu nariz, você não vê, mas o dedo está lá, em riste: “É o seguinte: vou enviar o artigo por sedex, mas se vocês [e neste vocês era como se incluísse todo mundo, do pessoal da faxina ao magnífico reitor] mexerem no texto do doutor ou se o perderem ou se copiarem uma vírgula sem a sua autorização, eu processo você e essa revistinha da USP! Estamos entendidos?”.
Dezessete horas e cinquenta e quatro minutos. O ponteiro do seu bom humor entrou na área vermelha da reserva. Como no romance de Stevenson, você está a um passo de virar uma outra coisa, não o Mr. Hyde, que não é de seu feitio sair por aí esmigalhando o crânio de ninguém, mas uma espécie peculiar de name-dropping, ou caga-nomes, em bom português, como aquele seu antigo professor de semiótica que, sem mais nem menos, saía com frases do tipo “o Caetano me disse outro dia…”, e a classe inteira ficava na dúvida se era um Caetano qualquer ou o Caetano. Na lanchonete, corriam apostas: “é o!”; “não é o!”.
Agora você tem um Caetano na manga e vai usá-lo. Ela devia ter procurado saber com quem iria falar antes de pegar o telefone. Pelo menos se informado melhor sobre a revista. A indagação no texto do DaMatta de repente adquire um sentido novo, cheio de perversas possibilidades… Mas você só queria ir pra casa. Tomar sua cerveja. Será que ainda está lá, entre a maionese e o brócolis? Na pior das hipóteses, você passa na padaria e compra duas. Talvez três. Pronto, está resolvido! Simples assim.
A assessora, do outro lado da linha, aguarda sua reação. Você dá um sorriso matreiro (ou semiótico?), igualzinho ao do professor: “Já que você está tão preocupada e o doutor é tão… tão ocupado, vamos fazer assim: você me envia o texto e eu o entrego pessoalmente nas mãos do Celso, combinado?”.
Silêncio. Ela está tentando decifrar que Celso é esse ao qual você se refere assim com tanta intimidade, como quem diz “eu passo no seu prédio mais tarde e deixo com o Djalma da portaria”. Que Celso é esse, meu Deus? Você pode sentir seu dilema do outro lado da linha.
Por um instante ela deixa de ser a assessora das Relações Internacionais. É a menina do interior que andava descalça e usava flores no cabelo e que batalhou para aprender inglês e conseguir um cargo no funcionalismo público de sua cidade. Está quase entregando os pontos. Você pressente que ela pode desabar a qualquer momento. E subitamente é tomado de uma inexplicável afeição por essa moça de São Francisco do Varal. Se começar a soluçar no telefone é capaz de você chorar junto. Ela cria coragem e pergunta: “Celso…?”. E se tiver uma avó doente, de quem cuida com o salário da prefeitura?
Dezessete horas e cinquenta e nove minutos. Você põe a bola na marca de pênalti. “O doutor não é secretário das Relações Internacionais?”, você pergunta. Ela percebe a ironia, se apruma: “Sim”. “Então, ninguém melhor para avaliar o texto dele do que o Celso…” Sua intenção era deixar que ela mesma dissesse o sobrenome do ministro das Relações Exteriores, que é conselheiro da revista. E depois parabenizá-la sarcasticamente pela perspicácia, quer dizer, pela inépcia de não ter averiguado isso antes de botar banca pra cima de você. Mas você perde a vontade e, comovido, refuga. E se ela tiver uma parreira de uvas no fundo do quintal?
Três dias depois, na segunda-feira, haverá um envelope na sua mesa, com o timbre da prefeitura de São Francisco do Varal e um bilhete anexo, escrito à mão com letra caprichada (você pode jurar que recendendo a rosas), exageradamente educado, tratando-o por excelentíssimo professor doutor, o que você não é, nem uma coisa nem outra, e isso o deixará cheio de ternura e sono. Ressaca do feriadão.
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