Lembranças de toda uma carreira de Itamar Assumpção

Por Magaly Prado, pesquisadora da Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 14/11/2023 - Publicado há 6 meses
Magaly Prado – Foto: Arquivo Pessoal
Trinta anos atrás, Itamar Assumpção (1949–2003) veio até a Rádio USP para uma conversa no estúdio. Comigo estavam o saudoso técnico Tião Marciano e o estagiário do programa Radioatividade, Charles Monfort. A proposta era deixar Itamar contar detalhadamente sobre o disco recém-lançado na ocasião: Bicho de 7 Cabeças. A reprise desta gravação de 1993 tem o intuito de prestar um tributo à genialidade deste que foi, dentre os artistas da música popular brasileira, um dos mais agudos — tão áspero e enérgico, quanto doce.

Francisco José Itamar de Assumpção nos deixou há 20 anos — uma triste efeméride, especialmente por ter morrido cedo, aos 53 anos. O compositor, cantor, instrumentista, arranjador e produtor musical, precursor do afrofuturismo e radicado em performance, foi deflagrado na cena independente paulistana que ajudou a formar nas décadas de 1980 e 1990. O legado indelével é formado por 12 discos (três póstumos). É possível apreciar alguns vídeos, o documentário Daquele instante em diante, de 2011, de Rogério Veloso, além de um songbook com partituras de suas canções.

Bisneto de escravos angolanos, cresceu em Tietê (interior de São Paulo). Sua vivência musical parte casualmente de ouvir, entre outros sons disponíveis a seus sentidos, o mais marcante — que vinha do quintal de terra da sua casa: os batuques do terreiro de candomblé, onde passou a tocar o atabaque nos cultos religiosos. Ficam marcados nele os festejos de batuque de umbigada, nos quais, por meio das letras, mostravam o cotidiano das condições sociais das pessoas da comunidade envolvida e como uma paisagem sonora, no conceito de Murray Schafer, passa a influenciar e envolver sua musicalidade, dando uma ambientação de forma consistente em carga emocional.

Itamar andava para cima e para baixo com o rádio portátil, de pilhas, de sua mãe. Dizia que a rádio era sua professora e aprendia de ouvido. Quando virou adolescente, já havia se mudado para o Estado do Paraná — e foi em Londrina onde integrou o Grupo de Teatro de Arapongas. Conheceu e morou com os irmãos, depois amigos, Paulo (Patife) e Arrigo Barnabé, também parceiros de composição. Há que se registrar que Itamar tocou e participou de arranjos do disco Clara Crocodilo, de 1980, em que Arrigo mostra o resultado de cinco anos de estudo na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, quando revolucionou os patamares, ultrapassando as características do próprio coletivo Vanguarda Paulista em que estavam inseridos. Musicalmente, os demais integrantes, como Rumo, Premeditando o Breque, entre outros, nem eram tão próximos; porém, tinham em comum o trabalho diferenciado da poesia, da interpretação e do uso da voz em meio à poluição sonora da cidade de São Paulo, insistentemente chamada de cinza. No mesmo ano de 1980 Itamar passa a registrar discograficamente sua prática musical sofisticada com Beleléu, Leléu, Eu. Um marco!

Por meio da escuta, seu aprendizado musical obteve influência do compositor estadunidense, cantor e guitarrista (número 1 entre as mais reconhecidas listagens de melhores do mundo) Jimi Hendrix (1942–1970) — músico que levou os efeitos de distorção às últimas consequências musicais. Também absorveu um tanto dos brasileiros Adoniran Barbosa e Cartola, além dos poetas Paulo Leminski Filho (1944–1989) e Alice Ruiz.

No entanto, ao passar a ouvir atentamente arranjos de baixo e bateria, apaixonou-se pelo contrabaixo elétrico. O motivo: por ser o mais percussivo instrumento de cordas e o de tom mais grave que, com suas notas, pontuava contrapondo às melodias de suas canções e dando ritmo como se fosse, de um lado, o tambor dos batuques de umbigada e, de outro, mais uma voz, uma linguagem em si mesma. Tambores falantes.

O ano de 1973 marca sua chegada a São Paulo — ou seja, 50 anos atrás — para dedicar sua vida à música; ou melhor, aos testes de rupturas musicais. Neste ponto, os sons ao redor fazem com que a paisagem sonora urbana impere e possa ser mesclada à paisagem sonora de origem africana conectada à memória de sua infância/adolescência, relacionando o som e o sentido de sua musicalidade a aflorar.

Muito além da tradicional música negra, seu som era um grande exercício de mistura com fusão de estilos (sem comprometimento de se fixar em nenhum deles), como samba, samba de breque, rap, reggae, rock, funk etc. — investidas dissonantes, música experimental, tudo descolado da mesmice própria dos estereótipos. Seu trabalho provocador, fora dos padrões, repleto de pausas gerando silêncios, ainda é tensionado em uma posição crítica frente às exigências mercadológicas.

Itamar gostava de trilogias. Os três primeiros LPs começam com Beleléu, Leléu, Eu, de 1980, que sacode o cenário insosso da MPB, lançado pelo selo Lira Paulistana — a frente musical do coletivo de arte em torno do qual se apresentava no Teatro Lira Paulistana (1979–1985) e que virou um polo da vanguarda musical no contexto da cena underground.

No segundo disco, o artista exibiu a marca do pioneirismo de sua produção independente e contracultural, com um título sui generis e irônico: Às Próprias Custas S.A., de 1981. Compõe este disco a música Batuque, cuja letra faz referência a 13 de maio de 1888 e à princesa Isabel, “que assinou um papé”. Cem anos depois, Itamar assina um papel pela única vez na vida com uma grande gravadora, a Continental, intitulado Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava…, de 1988. Antes ainda, Sampa Midnight saíra em 1986. Todos com a banda Isca de Polícia.

Na aura das sutilezas musicais, Itamar, ao manter relações diretas e evidentes de suas canções com uma linguagem performática por excelência, manifestava de forma carismática nos shows uma mistura da atuação, com elementos de uma encenação teatral. Sobre as palavras movidas pela entonação e movimentação do corpo, Paul Zumthor já dizia em A Letra e a Voz, de 1993: “A performance aparece como uma ação oral-auditiva complexa, pela qual uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora”.

Itamar representava o universo dos quadrinhos, elementos de rap e música explicitamente urbana, de tal modo que as letras de suas canções, por vezes, transmitiam metalinguisticamente suas preocupações de compositor. Era o ponto forte de Itamar, inicialmente com a banda Isca de Polícia, mas que perpassa toda a maneira de expressar a musicalidade de seu repertório artístico.

Há 30 anos, lançou Bicho de 7 Cabeças, o primeiro disco da trilogia acompanhado pela banda Orquídeas do Brasil, composta com dez musicistas. Isto demonstra que não somente as vozes femininas têm presença forte no resultado de seu trabalho como um todo — mas, também, elas com seus instrumentos. O detalhe de duas baixistas na formação reforça o apreço à sonoridade do seu instrumento predileto. No entanto, cada baixo tocando linhas diferentes.

Em 1995, lançou um CD com músicas de Ataulfo Alves, novamente com a banda Isca de Polícia. Em 1998, lançou o álbum Pretobrás, concebido como o primeiro de uma nova trilogia; porém, os dois álbuns que a completariam seriam lançados postumamente — com a participação de diversos artistas, que concluíram o material deixado por Itamar.

Um ano depois, foi lançado o álbum Vasconcelos e Assumpção – isso vai dar repercussão, gravado pouco antes da sua morte, composto de apenas sete músicas e em parceria com Naná Vasconcelos (1944–2016).

Em 2010, o Selo Sesc lança a box Caixa Preta, com toda a discografia anterior de Itamar, bem como dois álbuns inéditos (Pretobrás volumes II e III).

É lançada em 2012 uma coedição entre Itaú Cultural e editora Terceiro Nome: Itamar Assumpção: Cadernos Inéditos, coletânea de textos retirados dos 60 cadernos de anotações do músico, com letras, desenhos e poemas.

A crítica ao racismo e as sequelas sociais causadas surgem em várias canções — entre elas, Cabelo duro e Pretobrás, no uso de uma voz consciente.

Seus poemas com frases curtas, ritmo e rimas inusitadas, associados a mesclas musicais, fazem brotar a fala cantada. Outros da cena também usavam este expediente, mas fiquemos apenas com seu amigo Arrigo, que igualmente incorpora ao repertório a fala cotidiana — no caso dele, inspirada no estilo de locução radiofônica em Orson Welles. Bom lembrar que a bossa nova e principalmente a Tropicália faziam essa união da música com ênfase na poesia da mesma maneira das construções que identificam a dita vanguarda paulista.

As letras instigantes trazem uma série de imagens e situações que ficam ainda mais teatrais no diálogo com as vozes femininas de apoio — que, de modo geral, dialogavam de modo provocativo e questionavam o que dizia a voz principal. Tais cantoras faziam parte das Orquídeas do Brasil, que Itamar ajudou a criar para acompanhá-lo. Aliás, Itamar cultivava orquídeas.

Orquídeas do Brasil
Tata Fernandes, voz
Simone Soul, bateria
Miriam Maria, voz
Lelena (Maria H. Paula Sousa Anhaia de Mello), baixo
Clara Bastos, baixo
Renata Mattar, voz, saxes, flautas e sanfona
Geórgia Branco, guitarras
Adriana Sanchez, teclados
Simone Julian, sopros
Nina Blauth, voz e percussão

Entre suas canções mais conhecidas estão: Fico louco, Parece que bebe, Beijo na boca, Sutil, Milágrimas, Vida de artista, Dor elegante e Estropício. A mais linda é:

Coração Absurdo♫

O meu coração é um absurdo
Bate forte bate fraco
Bate surdo mudo
Bate por nada bate em vão
Bate por tudo
Bate pouco bate muito
Bate por ti sobre tudo

My heart beat strong
Beat ping pong
Beat beat beat weak
Beat deaf and dumb
Beat for nothing beat alone
Beat and jump
Beat little beat more
In the middle of this dump

Mein Herz schlägt stark
Schlägt tun tun tun
Sein Takt-Takt-Takt
Hat einen Grund
Schlägt für dich
Schlägt für sich
Sein Klang ist dumpf
Macht takt takt takt
In der Mitte von dem Sumpf

Discografia
Pretobrás – Por Que Que Eu Não Pensei Nisso Antes?, Atração Fonográfica, 1998.
Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra Sempre Agora, Paradoxx, 1996.
Bicho de 7 Cabeças Vol. III, Baratos Afins, 1993.
Bicho de 7 Cabeças – Vol. II, Baratos Afins, 1993.
Bicho de 7 Cabeças – Vol. I, Baratos Afins, 1993.
Intercontinental! Quem Diria! Era Só o Que Faltava!!!, Continental, 1988.
Sampa Midnight – Isso Não Vai Ficar Assim, MPA, 1983.
Às Próprias Custas S.A., Isca Gravações Musicais Ltda., 1981.
Beleléu, Leléu, Eu. Lira Paulistana, 1980 (com a banda Isca de Polícia).

Discografia póstuma
Pretobrás III – Devia Ser Proibido, Selo Sesc, 2010.
Pretobrás II – Maldito Vírgula, Selo Sesc, 2010.
Vasconcelos e Assumpção – Isso Vai Dar Repercussão, Elo Music/Boitatá, 2004 (com Naná Vasconcelos).

Nota: Itamar era casado com Elizena Brigo de Assumpção, sua companheira por 35 anos. Tiveram duas filhas, ambas cantoras e compositoras: Serena (falecida em 2016) e Anelis Assumpção, responsável pela criação e direção geral do Museu Virtual Itamar Assumpção (MU.ITA), cujo propósito é exaltar a obra desse genial músico.

Ouça, a partir da próxima terça (21), os dois programas da série USP Especiais em que Itamar Assumpção fala de Bicho de 7 Cabeças e das suas orquídeas – na Rádio USP, às 21h, com reapresentação no sábado, às 20h, e na semana seguinte, na área de podcasts do Jornal da USP.

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