Erney P. de Camargo: o trabalho de excelência de toda uma vida

Marco Antonio Zago é secretário de Saúde do Estado de São Paulo e ex-reitor da USP

 31/08/2018 - Publicado há 6 anos
Foto: Marcos Santos/USP Imagens

O texto abaixo reproduz as palavras do professor Marco Antonio Zago, em 22 de agosto de 2018, no Instituto de Ciências Biomédicas da USP, por ocasião da homenagem ao professor Erney Plessmann de Camargo:

É um prazer e uma honra participar desta homenagem e agradeço aos organizadores essa oportunidade.

Em 1931, o médico Samuel Pessoa assumiu a cadeira de Parasitologia da Faculdade de Medicina da USP declarando que procurava manter-se coerente com o objetivo de “atribuir sempre a maior prioridade aos verdadeiros problemas nosológicos do homem brasileiro”.

Dele, seu discípulo Erney de Camargo herdou duas características: amor pela parasitologia e uma facilidade de desprezar coisas irrelevantes e somente dar atenção aos verdadeiros problemas.  Por isso, Erney pode ser listado entre os cientistas que compõem a elite brasileira da protozoologia; seus trabalhos e de seus discípulos e colaboradores abarcam um amplo espectro do conhecimento envolvendo a biologia, a evolução e a filogenia de tripanosomídeos, plasmódios e vetores como anófeles. Inevitavelmente, esse tipo de estudo, quando feito por um médico, leva ao interesse pelos pacientes, pelos habitantes e pelas comunidades. Em especial as comunidades de regiões rurais ou isoladas, como a Amazônia.

Nesse seu interesse é possível identificar duas vertentes:

  1. Em primeiro lugar, o respeito pelo ser humano, pelo direito das pessoas, independentemente de sua origem ou condição de nascimento,
  2. E a crença de que a ciência e a tecnologia podem ser motores do desenvolvimento regional e da melhoria da qualidade de vida das pessoas.

Essa atitude dificilmente pode ser separada de sua história pessoal, e assim retornamos ao seu primeiro mestre, Samuel Pessoa, perseguido pela ditadura militar por suas posições políticas, por sua vinculação ao Partido Comunista e por ser um crítico permanente da organização social e das condições precárias em que vivia parte considerável da população.  Seus companheiros daquela época, que também se destacaram por serem cientistas de primeira classe, comprometidos com uma consciência social, incluem: Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Victor e Ruth Nussenzweig, Michel Rabinovitch, Luis Rey, Olga Castellani e José Ferreira Fernandes.

Muitos destes foram perseguidos, cassados e tiveram que emigrar. Mas não nos surpreende que os motivos, de fato, das perseguições, acusações e cassações fossem principalmente as divergências acadêmicas, o confronto entre o apego conservador, de um lado, e a renovação da ciência e da carreira acadêmica, de outro. A eterna luta entre os que buscam o progresso e a mudança e aqueles que desejam que nade mude, eternamente. Além de rancores pessoais, invídia e ambição.

Erney foi ator nesse ambiente, sofreu as consequências que, felizmente, trabalharam a seu favor – e também a nosso favor –, ampliando-lhe as oportunidades fora do País, onde evoluiu científica e culturalmente.

Retorno ao seu interesse pelas populações afetadas por grandes endemias parasitárias, pois esse foi o motivo que me fez encontrá-lo pela primeira vez, pessoalmente, em 1992, logo que me tornei professor titular; eu era então chefe do Departamento de Clínica Médica e diretor clínico do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. Dalmo de Souza Amorim era o diretor da faculdade. Erney era o primeiro pró-reitor de Pesquisa da USP, cargo que fora criado na reforma estatutária de 1988.

Erney pode ser listado entre os cientistas que compõem a elite brasileira da protozoologia; seus trabalhos e de seus discípulos e colaboradores abarcam um amplo espectro do conhecimento envolvendo a biologia, a evolução e a filogenia de tripanosomídeos, plasmódios e vetores como anófeles.

Motivo de nosso encontro: as instalações da empresa ICOMI, que extraía manganês em Serra do Navio, a 140 quilômetros da capital do Estado do Amapá, e trazia o minério por estrada de ferro própria até o porto de Macapá. Havia instalações muito boas para os trabalhadores, incluindo um amplo hospital, que atendia os funcionários, mas também a comunidade ribeirinha, onde havia grande prevalência de malária, blastomicose, leishmaniose e outras doenças infecto-contagiosas. Devíamos avaliar a possibilidade de instalar lá um campus avançado da FMRP, responsabilizando-nos pelo hospital e criando um polo de pesquisa de campo privilegiado, pois a empresa iria abandonar o local e fechar suas operações.

O projeto não foi em frente; as dificuldades, em especial logísticas, eram insuperáveis. Mas desde então tornei-me amigo de Erney, a quem viria encontrar várias vezes na vida, em virtude de nossos interesses comuns.

Erney, por sua vez, juntamente com outros colegas seus, como Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Henrique Krieger, que foi meu professor em Ribeirão Preto, nunca mais abandonaram a Amazônia. Por quê? Vale a pena perguntar. Tenho certeza de que ele nos responderá melhor que nossas especulações. Mas eu posso tentar dar minha versão.

Em primeiro lugar, há o espírito do pesquisador de campo, do parasitologista que vai à mata, ao sertão, às pequenas comunidades rurais, às favelas, em busca de material para estudo que completa, posteriormente, no laboratório. O mesmo espírito que aprendeu com Samuel Pessoa, e que impulsionou Carlos Chagas, durante suas pesquisas sobre malária na região do Rio São Francisco em Minas Gerais, a descobrir o Trypanosoma cruzi e sua vinculação com a tripanosomíase americana, a doença que viria posteriormente a ser conhecida como “Doença de Chagas”. O mesmo espírito aventureiro que o leva ainda hoje à África, a Moçambique e Madagáscar, em busca de amostras novas de tripanosomídeos e outros parasitas, vários deles sem interesse médico conhecido, mas que são excelentes alvos para estudos de filogenia e evolução. O mesmo espírito impulsionou um grupo de cientistas de nossa universidade a visitarem recentemente o Pico da Neblina, de onde trouxeram material biológico precioso para estudos de filogenia e evolução.

Há, no entanto, duas razões adicionais. O respeito pelas pessoas, a busca de dar atenção à saúde dos habitantes de locais distantes, sem acesso a médicos. Assim, fixou-se inicialmente em Porto Velho no Centro de Pesquisas em Medicina Tropical, onde ficou o professor Luiz Hildebrando. Erney e o filho Marcelo foram para Monte Negro, no interior de Rondônia, a 250 km de Porto Velho. Hoje, existe ali uma parte da USP, o ICB5, ou seja, o quinto prédio do ICB. É como se o ICB, implantado no campus central da USP, na Cidade Universitária, estendesse seu braço até o Estado de Rondônia, fazendo com que uma universidade que é respeitada internacionalmente também seja um centro de estudos dos problemas nacionais, como convém às universidades líderes. Lá está o Marcelo, filho do Erney, mas, mais que isso, membro respeitado e admirado de nossa universidade, pela trabalho incansável que desenvolve.

Mas há, talvez, um último motivo. A floresta amazônica é a maior floresta tropical do mundo, associada à Bacia Fluvial Amazônica, compõe um importantíssimo bioma e sistema ecorregional, que cobre cerca de 60% do território brasileiro. Preservá-la, ocupá-la racionalmente, conviver com ela, estudar sua biologia sem destruí-la é a ambição de grande número de cientistas brasileiros, que sabem de sua importância crucial para o presente e o futuro do mundo. Cuidar dela é um sinal de respeito com nosso país. É emblemático!

Meu encontro seguinte com Erney foi quando o substituí na presidência do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), em 2007. Devo destacar minha lembrança muito agradável da enorme tranquilidade com que ele tratou sua substituição. Pôs uma sala à minha disposição, providenciou o pagamento de diárias e passagens e programou entrevistas com todos os diretores e coordenadores, como parte do processo de transição que se estendeu por várias semanas. Foi meu conselheiro e facilitador. Com ele aprendi um ritual civilizado e exemplar, que tenho procurado repetir em cada cargo que ocupo: a passagem do poder quando se deixa um cargo proeminente.

Mesmo após deixar a presidência do CNPq, Erney continua exercendo importante papel na política de ciência do País, suas opiniões são sempre muito respeitadas por um grande número de dirigentes e cientistas, e das quais eu me beneficio com frequência.

Do período em que foi presidente do CNPq, devo destacar seu bem-sucedido empenho para reverter a tendência de queda do número e do valor das bolsas para mestrado, doutorado e iniciação científica, a criação da taxa de bancada para adicionar à bolsa de produtividade, a recuperação dos editais universais, a reorganização administrativa e dos comitês assessores, e a colocação on-line da Plataforma Lattes, o maior sistema de informação sobre pesquisadores do mundo. Altamente relevante, ainda, foi viabilizar a cooperação com as Fundações de Amparo à Pesquisa dos Estados. Essas medidas me permitiram, no período seguinte, quando o substituí finalmente, lançar o mais ambicioso programa de apoio à pesquisa científica até o momento no País, o dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia.

Mesmo após deixar a presidência do CNPq, Erney continua exercendo importante papel na política de ciência do País, suas opiniões são sempre muito respeitadas por um grande número de dirigentes e cientistas, e das quais eu me beneficio com frequência.

É, pois, com grande alegria que participo desta homenagem ao professor Erney Plessmann de Camargo: cientista, homem de consciência social, gestor de ciência e tecnologia, amigo. Sei que tem grande orgulho de ver que suas qualidades se repetem em seus quatro filhos, com três dos quais tive oportunidade de conviver e trabalhar como cientista e como reitor.

Parabéns ao ICB, que o recebeu e ainda se beneficia de seu trabalho, o qual lhe presta esta merecida homenagem hoje.

 

 


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